O campo da ciência está em constante transformação. Afirmações de ontem são contestadas por novas teorias hoje, simplesmente, para serem derrubadas séculos mais tarde. Essa constante quebra de paradigmas, é um processo natural na evolução do conhecimento humano.
O que pode acontecer com um homem que cria o último estágio de um processo de desenvolvimento tecnológico? Satisfação, reconhecimento, notoriedade? Com certeza, essas foram sensações experimentadas por Charles-Émile Reynaud (1844-1918), um professor de ciências e pintor francês.
A animação tornou-se um artigo colecionável, desde o momento em que os primeiros experimentos científicos tornaram-se brinquedos. Com o surgimento do Zootrópio, séries de ciclos de animação eram vendidas separadamente do dispositivo ótico, o que gerou uma demanda crescente por conteúdo animado. Émile Reynaud percebeu que no zootrópio as pessoas eram obrigadas a olhar através de pequenos orifícios, e mesmo assim, muitas dessas pessoas não conseguiam perceber os movimentos animados corretamente. Assim, em 1876 Reynaud apresentou o Praxinoscópio, que realizava o mesmo processo de percepção da animação obtida pelo zootrópio, onde a animação poderia ser visualizada de forma mais simples e sem esforço.
A genialidade de Reynaud foi a substituição dos orifícios por pequenas tiras de espelho. No praxinoscópio, cada desenho é refletido por uma única tira de espelho, e ao girarmos este aparelho, as imagens refletidas se alternam, permitindo assim, o processo psicológico de formação do movimento aparente (animado). Já em 1877, é lançado a versão de brinquedo do praxinoscópio. Em 1879, o Teatro Praxinoscópio permitiria a inserção de elementos de cena, dispostos em profundidade de campo; na tentativa de criar uma atmosfera e criar recursos de narrativa para as animações.
Essa invenção, bem como as posteriores, nos permitem perceber que Reynaud queria produzir um aparelho de contar histórias; talvez muito mais do que apenas criar ilusões de movimento. Em 1880, era lançado o Praxinoscópio em Projeção. Temos que admitir que este simples professor de ciências criou inúmeros avanços tecnológicos para um aparelho que, por si só, já era uma evolução técnica. Com o sistema de projeção, mais espectadores poderiam apreciar as animações criadas e novamente, este aparelho, caiu no gosto popular.
Foram oito anos de pesquisa e desenvolvimento, e no ano de 1888, Émile Reynaud cria o Teatro Ótico, o primeiro dispositivo de projeção de animações complexas, animadas na frequência de 15 quadros por segundo, e com duração média de 15 minutos. As Pantomimes Lumineuses, como eram chamadas, tiveram sucesso absoluto de público, com sala de exibição lotada e ingressos vendidos ao montes. No início do ano de 1900, o Teatro Ótico tinha alcançado um público superior a 500.000 espectadores e Reynaud estava com grana no bolso e sorriso no rosto.
Não por muito tempo…
Imagine o trabalho de criar um aparelho de exibição e projeção de animação antes da invenção do cinema. Agora acrescente a dificuldade de pintar 13.500 imagens sequenciais e colorir uma a uma. Agora imagine realizar isso tudo pensando na sincronia com a música que seria orquestrada ao vivo. Fácil? Quem é animador ou já teve a experiência de animar sabe o quão difícil é realizar essa tarefa. Assim, nascia a animação como conhecemos hoje, por isso que o Dia Internacional da Animação é comemorado no dia 28 de outubro, mesma data que, em 1892 ocorreu a primeira exibição do Teatro Ótico de Émile Reynaud.
Novamente a pergunta: O que pode acontecer com um homem que cria o último estágio de um processo de desenvolvimento tecnológico? Satisfação, reconhecimento, notoriedade? Com certeza, mas no caso do Teatro Ótico, esses sentimentos não perduraram. Três anos após a primeira exibição das animações de Reynaud, surge o cinematógrafo dos Irmãos Lumiére. Com o tempo, o dispositivo cinematográfico tornou o processo de filmagem, revelação e exibição mais dinâmico. Em relação ao tempo necessário para a elaboração de uma única animação exibida pelo Teatro Ótico, fazer um filme como faziam Marey e Muybridge e Edison, era muito mais fácil e rápido.
A impressão do movimento aparente, obtida pela câmera de cinema, é incomparável com qualquer movimento animado, principalmente pelo processo de identificação que ocorre na mente do espectador. Por exemplo: ao vermos uma galinha, em uma animação, estamos vendo um animal da espécie “galinha”, portanto, vemos um exemplar genérico. No cinema o processo é diferente; ao vermos uma galinha, estamos diante “daquela” galinha distinta e específica que foi filmada em um determinado lugar e momento da história da humanidade. Esse fenômeno, popularizado pelo cinematógrafo, acabou em poucos anos, com o interesse pelo Teatro Ótico de Reynaud.
Segundo o colecionador e escritor Laurent Mannoni “O cinematógrafo se vingará cruelmente, como se não admitisse – ele, que recria a vida com uma perfeição maníaca – a superioridade artística e cheia de fantasia do teatro ótico. As imagens cinzentas e vacilantes irão banir as cores deslumbrantes; os filmes rodados ao ar livre ou as farsas de caserna e vacilantes substituirão as aventuras de Pierrot e Colombina, do Copurchic bisbilhoteiro e da bela parisiense“
Além derrotado, desiludido e inconformado por seu invento ter sido substituído, veio a 1a. Guerra Mundial e f*%$ tudo de vez! O Pai da animação, reconhecido atualmente em todo mundo, em 26 de março de 1917, teve um derrame e foi hospitalizado até morrer em janeiro de 1918 às 10:15 da manhã.
Sou estudante de audiovisual, descobri seu blog por acaso. Estou adorando, muito bom \o/ !!
Curioso como hoje, pesquisadores do porte de Laurent Mannoni concedem que as imagens maravilhosamente coloridas e animadas de Reynaud e mesmo as imagens estáticas das primeiras lanternas mágicas eram muito mais impressionantes que a pobreza das imagens do cinematógrafo. Por exemplo, pela falta de um padrão para as carretilhas de filme, as primeiras projeções do cinematógrafo “dançavam” na tela, além de parecer bem menos impressionantes que as modernas restaurações, mais luminosas e definidas. Esse contraste é aind mais doloros quando pensamos que o cinema fantástico de Melies ou Segundo de Chamon, que recuperariam o prazer da invencão de imagens artificiais e ilusionismo, demoraria anos após a apresentação da invenção dos irmãos Lumiere para engrenar (e, ainda assim, Melies terminou a vida falido, com uma banquinha de brinquedos em estação de trem de Paris).
Por isso, mais que nunca, a redescoberta de Reynaud deveria ocorrer, com a retomada de vários dos princípios técnicos que ele imaginou/produziu, para a criação, com a tecnologia digital, de ainda mais impressionantes máquinas ópticas para contar histórias.
Legal ver que a sintonia existe e que você entendeu bem o sentido do meu Post. Como sempre falo, a contribuição de Reynaud para o cinema foi em outra ordem… falo mais disso nesse outro post (aqui) O que faltava para a animação da época era apenas desenvolvimento tecnológico… O cinema live action conseguiu superar rapidamente a sua fase de reconhecimento da nova tecnologia, enquanto a Animação continua até hoje se baseando no virtuosismo da técnica.
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Olá (: gostaria de saber se você possui algum livro ou bibliografia sobre Charles-Émile?
olá! um bom livro seria MANNONI, Laurant. A Grande Arte da Luz e da Sombra: Arqueologia do Cinema. São Paulo: Editora SENAC; Sâo Paulo: UNESP, 2003. que está na bibliografia e nas referencias deste post! um abraço e bons estudos
Muito Obrigada (:!