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“Brasão de armas, segundo a maioria das definições publicadas, é um conjunto formado pelas figuras heráldicas de determinada família ou instituição inscritas num escudo, acompanhado por atributos e ornatos exteriores (coroas, elmos, figura, mitra, ceptros, colares de ordens honoríficas, tenentes, divisas, etc).). Deriva do alemão «blasen», que quer dizer tocar, trombeta.
As armas reais da nação portuguesa levaram à criação dos brasões das cidades, vilas e aldeias.
O brasão de Coimbra é um dos mais antigos do país, e reúne na simbologia dos seus elementos, uma definida «carga» histórica e lendária que justifica e tem possibilitado o seu estudo e interpretação no decurso do tempo, por historiadores, heráldicos e investigadores de diferentes áreas histórico-culturais.
Salienta-se, neste contexto de simbologia, a grandeza do amor e de paixão, uma ideia de cruzada que dominou parte da Idade Média e que forjou uma amplitude sobrenatural que se interligou na acção política, espacialmente, na guerra libertadora contra os bárbaros e os mouros.
Uma concepção religiosa e guerreira que se reflecte nos nossos cronistas, historiadores e literatos, e que se insere na consciência nacional que enraíza na heráldica, na representação heráldica de Coimbra e de outras povoações do território português.
Por isso, a diversidade das interpretações, os conceitos de luta pela conquista e independência, o enraizamento da nacionalidade e outros factores de portugalidade e cidadania, são razões suficientes para que o brasão de armas da Lusa-Atenas tivesse sofrido, ao longo dos séculos, algumas alterações, que o moldaram e lhe consagram os motivos principais que ostenta.
A portaria de 1930 que referimos anteriormente, e que disciplinou a constituição, modificação e uso do brasão de armas das cidades e vilas, proporcionou a portaria que definiu o actual brasão da cidade de Coimbra. Aquela portaria com o n.º 6959, datada de 14 de Novembro daquele ano, esclarece e autoriza, o seguinte:
-«Tendo em vista o parecer da Secção Heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses e atendendo ao que representou a Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Coimbra: manda o Governo da República Portuguesa, pelo Ministro do Interior, que a constituição heráldica das armas daquele município seja a seguinte:
-«De vermelho com uma taça de ouro realçada de púrpura, acompanhada de uma serpe alada e um leão batalhantes, ambos de ouro, e lampassados de púrpura. Em chefe um busto de mulher, coroada de ouro e vestida de púrpura e com manto de prata, acompanhada por dois escudetes antigos das quinas. Colar da Torre e Espada. Bandeira com um metro quadrado, quarteada de amarelo e de púrpura. Listel branco com letras pretas. Lança e haste de ouro».
Paços do Governo da República, 14 de Novembro de 1930. O Ministro do Interior, António Lopes Mateus.”
UM PERCURSO DE SÉCULOS
“Segundo o Doutor Augusto Mendes Simões de Castro, o brasão mais antigo de Coimbra muito diferente na composição do actual, remonta a 1303 (ano 1265), respigando um manuscrito de D. José de Cristo, existente na biblioteca municipal do Porto. Naquela carta vêem-se «ainda hoje as armas de Coimbra antigas, muito diferentes das modernas, porque têm uma donzella dos peitos para cima com sua coroa na cabeça, dos peitos para baixo está como comida porque tem três pontas a modo de campainhas, debaixo uma cobra, que está com a cabeça metida em uma cousa que parece vaso, com dois escudos das armas de Portugal de uma parte e de outra, junto aos hombros da figura, com esta letra que diz: sigillum conciliicivitatis Colimbria».
Traduzindo a referida composição, vemos o busto de uma donzela, ladeado por dois escudos com as quinas, mais abaixo uma cobra em movimento e uma taça sobre a qual a cobra lança a cabeça e a língua, e por baixo, uma flor com haste que preenche um dos contornos da cobra.
Contudo, o Dr. Carlos Santarém Andrade invocando um documento da era de 1278, que corresponde ao ano de 1240 dos nossos dias, depois do acerto da datação juliana que retirou 38 anos ao antigo e que tinha como referência o ano escolhido como sendo do nascimento de Cristo (Portugal aderiu ao calendário, por carta régia de D. João I de 22 de Agosto de 1422) afirma que «a mais antiga representação conhecida das armas coimbrãs encontra-se num documento da era de 1278 (ano de 1240), que tem pendente um selo de cera vermelha, em que se pode ver um busto de uma figura feminina, coroada, e com um manto, tendo à volta um outro manto ou resplendor».
A representação de 1265 manteve-se conforme se pode testemunhar nos diversos documentos em que aparece, até aos finais do século XVI, salientando-se o selo pendente que autentica o auto de aclamação de D. João I, que ocorreu em Coimbra a 6 de Abril de 1385. aliás, os selos pendentes de cera ou de chumbo que autenticam diplomas da Idade Média, são os melhores documentos iconográficos que existem para analisar os primórdios da formação das armas de Portugal e dos municípios.
O brasão de Coimbra sofreu, posteriormente, uma transformação com a introdução no seu campo da figura do leão e do dragão. Desconhece-se, por falta de documentos credíveis, a data em qual aconteceu, embora se possa afirmar que essa adição, aconteceu, possivelmente, no decorrer do século XV, interpretando a composição do reinado de D. Manuel I, em que o brasão está alindado com esses ornamentos. Entende-se, portanto, que o brasão de D. Manuel difere dos anteriores.
O brasão manuelino de Coimbra surge incorporado na iluminura do foral novo outorgado à cidade em 4 de Agosto de 1516, e entregue à Câmara em 22 de Agosto de 1517. Nele avultam as armas daquele rei, ladeados da esfera armilar, sua divisa (emblema pessoal do monarca), símbolo da marca de grandeza do empório português e do domínio dos mares.
Ora, é no foral manuelino que o brasão de Coimbra se apresenta, já, com alguns elementos que o vão caracterizar e, definitivamente, consagrar. A introdução das armas de Coimbra na carta de foral de D. Manuel I, caso raro em Portugal ( o foral do Porto recebeu, também, esse privilégio), não pressupõe a concessão das armas, mas simplesmente uma delicadeza do iluminista para com a urbe do Mondego, uma cidade com forais antigos e com amas já institucionalizadas desde o século XIII.
Por outro lado, diversos brasões de pedra que foram colocados em casas foreiras do município, e que existem, alguns, no Museu Nacional de Machado de Castro (reproduzimos, à frente, as suas imagens) evidenciam os atributos do foral manuelino.
Depois do século XVI, a representação, a composição do brasão de armas, não é uniforme, ou seja, os elementos que o compõem não prevalecem os mesmos em todos os exemplares, seja em pedra, no selo, nos tecidos ou noutro material. A cobra, a serpe alada e o dragão variam na representação, conforme o autor ou encomendante do brasão. Ora, surge a cobra, ora a serpe alada, ou o dragão, e a sua posição não é definitiva, porque se apresentam quer à direita, quer à esquerda da figura feminina, enquanto o remate culmina com coroas de várias formas, logo sem uniformidade e até sem regras específicas, ao gosto do artesão ou encomendante, como dissemos.
A este respeito, da ausência de uniformidade da coroa, lembramos que em heráldica há quatro categorias: heráldica de família, heráldica de domínio, heráldica eclesiástica e heráldica de corporação. A heráldica de domínio é a que interessa, neste estudo, porque investiga as armas e selos das terras que tiveram foral. Naquelas armas e selos figura, na generalidade, uma coroa mural, que representa como que a própria povoação, que «desta forma se supões cercada pelos seus muros». Uma terra, nestas circunstâncias, compete-lhe uma coroa mural de cinco torres, própria da categoria de cidade. Porém, no brasão de Coimbra aparece, depois de 1867, a coroa ducal, porque a donzela nele representada, segundo a lenda é filha de reis, e só estas podem ser «coroadas de coroa ducal, e fazer uso d’ella em seu brazão». Apesar destas alteração, os impressos do Município continuaram a trazer, até 1883, no frontispício, o aludido erro, embora a imprensa local se tivesse ocupado diversas vezes do assunto, nos anos de 1863 e 1864.
A colocação do brasão da cidade nos chafarizes, em 1863, cuja representação compreendia, «em campo de prata um cálix; dentro em meios corpo de donzela de mãos postas, coroada de coroa de bicos; à direita a serpe, e à esquerda leão rompante, com o timbre de coroa inclassificável», ocasionou uma crítica construtiva de António Maria Seabra d’ Albuquerque, sócio da Associação dos artistas de Coimbra, que discordando, totalmente, daquela representação ofensiva das gentes de Coimbra escreveu e expôs à vereação, em 1866: «doeu-nos o coração ao lembrarmo-nos que algum viajante curioso, versado em antiguidades, poderia, olhando para ele (brasão colocado nos chafarizes), fazer um triste conceito de nós, habitantes desta boa terra, e da sua ilustre municipalidade». Adiantava, que o brasão de composição correcta, devia ser: «Em campo de vermelho cálix de ouro; dentro em meio corpo donzela de mãos postas, de vestes de prata, coroada de coroa ducal; à direita serpre de verde, à esquerda leão de ouro, batalhantes: timbre – coroal ducal». A discordância do especialista foi sustentada, sobretudo, porque o campo era de prata, e invertida a posição do leão e da serpe, e a coroa de sete bicos (pérolas). É que, sobre o brasão as coroas designam soberania e senhorio, como afirma. Esclarece a sua atitude, historiando que D. João I deu o senhorio da cidade, com o título de duque, primeiro que houve em Portugal, a seu filho o Infante d. Pedro, como se colhe da doação escrita em Tentúgal, aos 11 de Outubro de 1458 (ano de 1420), «fazemos saber que nós fazemos mercê e doação a meu filho o infante D. Pedro, duque de Coimbra…» E, a coroa ducal, como sustente o senhor António Seabra d’Albuquerque, no livro mencionado, começou a fazer parte integrante do brasão desde o Infante D. Pedro. Mais tarde, encontra-se a doação de D. Afonso V, escrita em Santarém aos 12 de Julho de 1448, a confirmar a referida doação com o complemento de «mandarmos que os filhos descendentes do dito meu tio (D. Pedro)…se chamem duques da mesma cidade de Coimbra, como hora faz o dito infante meu tio…».
Com a morte de D. Pedro, nenhum dos filhos teve sucesso pelo que o senhorio de Coimbra voltou para a coroa. D. João II, sem filhos herdeiros, indicou, então, o seu filho bastardo, D. Jorge, por testamento feito em Coimbra, aos 29 de Setembro de 1495, como senhor da cidade, «me praz de lhe fazer graça, doação e mercê antre vivos valedoura d’agora, para todo sempre da minha cidade de Coimbra em ducado». Após a sua morte, D. Manuel fez duque de Coimbra e senhorio da cidade, no ano de 1500, a D. Jorge, com a condição dos cidadãos e gente do povo da cidade, o quererem. A Câmara aceitou, excepto, o vereador Diogo Arraes de Mendonça, que foi acompanhado, na urbe, por mister Pedro, alfaiate. Insurgiram-se contra tal deliberação, lançaram nas ruas um escandaloso motim, sendo alterada a decisão e o senhorio da cidade passou para o monarca e o ducado regressou à Coroa. Todavia a coroa ducal foi a que tinha direito a Lusa-Atenas. Por isso, em 1867, as armas de Coimbra passaram a ser uniformes, sendo o conjunto encimado por uma coroa ducal, que se manteve até à proclamação da República, até 1910. Começou a ser impressa nos documentos oficiais e em outras publicações municipais, incluído a fachada dos paços do Município, embora esteja errado, naquela fachada, o desenho da referida coroa, em que o «escultor entremeou uma pérola entre cada uma das folhas de aipo, o que só pertence à coroa de Visconde, de Conde, e nunca à ducal, que se compõe de um círculo de ouro, ornamentado de cunhas e com oito folhas de aipo, simplesmente», além de ter optado, na colocação das figuras, pela disposição de leão à direita e dragão à esquerda.
Com a República, em 1911, a Câmara substituiu a coroa ducal pela coroa mural (esta coroa no tempo dos gregos e dos romanos premiava o primeiro soldado que escalava os muros de uma cidade sitiada, sendo de ouro e cercado de desenhos em forma de Ameias).
Em 1919, por decreto de 10 de Maio, mandado publicar pelo Ministro da Guerra e assinado por João do Canto e Castro Silva Antunes e António Maria Baptista, foi concedido à cidade de Coimbra o grau de cavaleiro da Ordem da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, «pelo heroísmo, civismo e amor que (manifestou) em sustentar a integridade das instituições republicanas, quando estas correram o perigo de ser substituídas pela acção proeminente que os monárquicos tinham dentro da República».
O Colar da Torre e Espada do Valor, Lealdade e Mérito com medalha da mesma Ordem passou, então, a orlar o brasão de armas, enriquecendo-o com a distinção recebida.
Finalmente, devido ao sistema disciplinador e de qualificação da heráldica municipal, elaborado pela Comissão Heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses, entrado em vigor em 14 de Abril de 1930 ( ver capítulo «A heráldica das autarquias»), o brasão de Coimbra a partir de 14 de Novembro de 1930, recebeu a actual forma, tendo recuperado nesta composição os escudos nacionais antigos que outrora sustentara e que, como escrevemos, foram sendo modificados ou suprimidos, em diversas composições.”
NUNES, Mário, 2003, O Brasão de Coimbra, Coimbra: GAAC - Grupo de Arqueologia e Arte do Centro.
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