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A desmobilização dos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas da Guerra Colonial (1961-1974)
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Estudos

A desmobilização dos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas da Guerra Colonial (1961-1974)

La démobilisation des combattants africains des Forces Armées Portugaises de la guerre coloniale (1961-1974)
The demobilization of African soldiers in the Portuguese Armed Forces during the Portuguese Colonial War (1961-1974)
Fátima da Cruz Rodrigues
p. 113-128

Resumos

Nas guerras que marcaram os últimos anos da presença colonial portuguesa em África, Portugal recrutou mais de 400 mil africanos para as suas Forças Armadas. Neste artigo, pretende-se apresentar os resultados de uma pesquisa que procurou saber como foi ponderada a situação desses combatentes no final dessa Guerra e como os seus países de origem os acolheram logo após as suas independências.

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A Africanização das Forças Armadas Portuguesas

1O recurso a combatentes africanos variou ao longo da última guerra que Portugal protagonizou em Angola, em Moçambique e na Guiné e foi diferenciado conforme os territórios, contudo ele faz parte de uma das muitas estratégias que traduzem o último esforço, por parte do regime, de manter essa África ainda portuguesa.

  • 1 Sobre os valores apresentados ver, por exemplo, Sachetti, António (2000), «A acção da armada nas ca (...)

2No ano que antecede o início da guerra, em 1960, eram 6 500 os militares do exército português mobilizados em Angola. 5 000 desses soldados pertenciam ao então denominado recrutamento local. Até ao final do ano de 1961, estes valores sofrem uma profunda transformação. Rapidamente se inverteu a proporção dos números dos soldados mobilizados em Angola. O número de soldados africanos, que era de 5 000 no final de 1960, manteve-se o mesmo até finais de 1961, enquanto o número de soldados expedicionários aumentou de 1 500 para 28 477. No final desse mesmo ano, a maioria dos soldados mobilizados nos três territórios pertencia ao recrutamento vindo de Portugal. Apenas 18,21%, dos 49 422 soldados mobilizados, pertenciam ao recrutamento local1.

  • 2 Souto, Amélia Neves de (2007), Caetano e o Ocaso do «Império»: Administração e Guerra Colonial em M (...)

3Esta lógica militar, que privilegiava o envio de forças expedicionárias, derivava da ameaça que a africanização das Forças Armadas Portuguesas (FAP) representava para certos segmentos do regime, fruto da desconfiança que acabava por recair sobre qualquer africano, sobretudo desde o início da guerra em 1961, «[...] vendo em cada negro um eventual terrorista»2.

4Mas esta tendência não se manteve por muito tempo.

5Pelo contrário, à medida que as guerras se prolongaram, a tendência foi a do aumento progressivo de militares de origem africana nas FAP. Embora o total desses efetivos nunca tenha ultrapassado o do recrutamento oriundo de Portugal, a não ser em Moçambique a partir de 1971, não só o número de africanos que serviram as forças portuguesas se tornou mais significativo, sobretudo a partir de 1968, como algumas unidades de soldados africanos, como veremos mais adiante, assumiram papéis relevantes na estratégia militar implementada.

  • 3 Segundo os dados disponíveis, ao todo foram recrutados 1.367.896 homens. 443 649 desses homens fazi (...)
  • 4 Isto sem contar com algumas das forças chamadas irregulares ou auxiliares que não fazem parte dos d (...)

6Em termos globais, e de acordo com os valores disponíveis, entre 1961 e 1973 foram recrutados aproximadamente 1 milhão e 400 mil soldados para a guerra. Mais de 400 mil desses homens faziam parte do recrutamento local3, ou seja aproximadamente um terço dos efetivos4. Importa realçar que, em termos gerais, enquanto em Angola e em Moçambique os valores dos soldados africanos tendeu a aumentar, o mesmo não se verificou em relação aos naturais da Guiné. Contudo, e ainda em termos gerais, no final dos conflitos, o recrutamento local representava aproximadamente metade dos contingentes presentes nos três territórios.

  • 5 Cann, John (2005), Contra-Subversão em África: como os Portugueses fizeram a Guerra em África – 196 (...)
  • 6 A africanização da guerra não parece ter sido acompanhada pela diminuição do número de mortos de so (...)

7Os principais fatores que justificam esse aumento do recrutamento local durante a guerra prendem-se, fundamentalmente, a razões de ordem política, militar e económica. As dificuldades que as Forças Armadas enfrentavam, em particular a escassez de efetivos portugueses disponíveis, fruto de deserções e sobretudo da emigração, os problemas da sua adaptação aos territórios africanos, os elevados custos da sua instrução e transferência para África, a sua progressiva desmoralização à medida que a guerra se prolongava, e os problemas financeiros face a uma guerra que se desenvolvia em três territórios longínquos, constituem um primeiro conjunto de motivações impulsionadoras da progressiva africanização da guerra5. Por outro lado, face à perspetiva segundo a qual os conhecimentos que as forças africanas teriam dos territórios, das línguas e de outras características locais seriam uma mais-valia para vencer uma guerra de guerrilha, reforçar o recrutamento local nas forças portuguesas tornava-se uma resposta adequada. Esta estratégia serviria, igualmente, para responder à necessidade de uma eventual diminuição de mortes em combate de soldados oriundos de Portugal6.

  • 7 Coelho (2002) «African troops in the portuguese colonial army...», p. 140.

8Além destes motivos, perante um número crescente de africanos com formação militar que, eventualmente, poderiam vir a juntar-se aos exércitos dos movimentos de libertação após terminarem o seu serviço militar obrigatório, readmiti-los nas forças portuguesas pode ter constituído uma das soluções encontradas para evitá-lo, contribuindo, simultaneamente, para engrossar o número de efetivos locais das forças portuguesas7.

  • 8 Afonso e Gomes (2005), Guerra Colonial…, p. 339.

9Por último, embora as manobras de envolvimento direto das populações locais na guerra, nomeadamente através da manipulação de supostas rivalidades tribais, tenham variado entre os três territórios, a africanização foi utilizada para a criação de «[...] clivagens e antagonismos que demarcassem campos de actuação e dificultassem o alargamento das bases de apoio dos movimentos de libertação»8. À semelhança do jaunissement da força francesa na Indochina (1946-1954), do recrutamento de soldados locais na Argélia (1954-1962), bem como da vietnamização da guerra norte-americana (1963 e 1973) ou da teoria do same element utilizada pela força britânica na Malásia, africanizar a guerra significava aplicar um dos princípios basilares das teorias da guerra ‘contra-subversiva’: conquistar as populações locais. Neste sentido, a africanização das forças portuguesas também contribuía para um maior envolvimento das autoridades africanas na guerra, nomeadamente através da sua participação na formação de forças de defesa baseadas na inclusão de soldados locais.

  • 9 Castelo, Cláudia (1999), «O Modo Português de Estar no Mundo». O Luso-Tropicalismo e a Ideologia Co (...)

10Mas, se a africanização das FAP deu resposta a necessidades económicas e a interesses estratégicos de carácter militar, o que parece é que serviu igualmente, e a par de outras medidas implementadas na época, para demonstrar e promover a ideia de que Portugal era, de facto, uma nação pluricontinental e pluri-racial sustentando, assim, a defesa da manutenção do domínio português nos territórios africanos. Algumas medidas legislativas desencadeadas pelo Estado português a partir do início da guerra, que procuravam anular qualquer dispositivo legal que regulamentasse a discriminação entre portugueses e africanos, são exemplo disso. A medida mais significativa desse período, e que se soma a outras dirigidas especialmente aos africanos, acontece precisamente uns meses após o início da guerra, a 6 de setembro de 1961, com a abolição do Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas. Deste modo, todos os portugueses passavam a ser, pelo menos teoricamente, regidos pela mesma lei, independentemente da sua origem, cultura ou religião, mostrando-se, assim, que a distinção que até então a lei estabelecia entre indígenas, assimilados e portugueses deixava de existir. Contudo, tudo indica que estas e outras medidas serviram sobretudo para, «[...] agradar à comunidade internacional e apaziguar os ânimos nas colónias, [...] [ e ] imprimir um cariz de igualdade racial à legislação ultramarina [...]»9.

  • 10 Destacam-se as comemorações do 10 de junho, onde foram condecorados diversas vezes publicamente com (...)
  • 11 Efetuou-se uma pesquisa empírica à imprensa portuguesa publicada entre o início da guerra até ao 25 (...)

11A par destas medidas, verifica-se que, ao longo da guerra, a propaganda colonial foi concedendo uma visibilidade crescente aos combatentes africanos das FAP e às suas virtudes heroicas, que promoveu e exaltou publicamente, em diversas ocasiões10. A imprensa portuguesa11, ao apresentar o combatente africano como um sujeito no qual as Forças Armadas e o Estado portugueses depositavam a sua total confiança, e ao caracterizá-lo como um soldado disciplinado, corajoso, obediente e dedicado aos seus superiores, leal e solidário com os seus companheiros de armas, e agraciado com as mais altas condecorações do Exército, o poder colonial português renovou argumentos para reivindicar e legitimar a sua dominação em África. Desta vez, ao promover a ideia de que a África-portuguesa era defendida por combatentes africanos, o argumento que o poder colonial utiliza para justificar a manutenção do seu domínio é atribuído, em parte, aos «filhos da terra».

12Por sua vez, a abolição do Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas obrigou as Forças Armadas a alterar as categorias que classificavam os soldados em função da sua situação perante esse Estatuto agora revogado e, pouco depois, os soldados passaram a entrar em duas categorias que deixaram de ser determinadas pela origem e passaram a sê-lo pelos níveis de instrução e, sobretudo, pela habilidade de falar corretamente o português.

13Nas FAP, a integração dos africanos continuou, contudo, a obedecer a certas especificidades, pelo menos em função do tipo de unidades que o poder colonial formou e utilizou ao longo da guerra. Embora a força colonial tenha privilegiado a formação de unidades mistas, formadas por europeus e africanos, importa não esquecer que também foram criadas forças exclusiva, ou quase exclusivamente, compostas por africanos e que, em termos gerais, a importância destas unidades irregulares aumentou à medida que a guerra se prolongou.

  • 12 Em 1974, segundo a Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, eram 22 800 o total dos homen (...)

14Este fenómeno representa, assim, uma outra faceta da africanização da guerra. À semelhança do que acontecia desde o século XIX com as forças de ‘segunda linha’ e com os exércitos auxiliares, desde 1961, e até ao final das guerras, formou-se uma heterogeneidade de grupos de soldados locais com finalidades diferenciadas que variaram conforme os territórios e dependiam dos comandos militares, das autoridades administrativas, da PIDE/DGS ou de outras entidades12.

  • 13 Criadas em 1966, sob a autoridade da PIDE/DGS, as Tropas Especiais emergiram em Cabinda quando Alex (...)
  • 14 Estes grupos estavam normalmente sob comando militar, tinham o mesmo treino das tropas regulares, e (...)
  • 15 Formados por refugiados catangueses que chegaram a Angola em 1967. Os Fiéis foram organizados em co (...)
  • 16 Formados por refugiados da Zâmbia que chegaram a Angola em 1967. Foi constituída apenas uma companh (...)
  • 17 Os Flechas surgem em 1966 e, ao contrário dos Leais e dos Fiéis, eram de origem angolana, mais prec (...)
  • 18 Antunes (1995), A Guerra de África…, Vol. II, pp. 925-931; Afonso e Gomes (2005), Guerra Colonial…, (...)

15Angola foi o território onde se verificou a maior diversidade deste tipo de forças. Foram criadas as Tropas Especiais, inicialmente formadas por ex-guerrilheiros13, e Grupos Especiais (GE) compostos maioritariamente por africanos voluntários14. Além destes dois grupos, em Angola existiram também os Fiéis15, os Leais16, os Flechas17, as Milícias e a Organização Provincial de Voluntários de Defesa Civil (OPVDCA) sob a responsabilidade da PIDE/DGS e das autoridades administrativas18.

  • 19 Segundo Coelho, o aumento e a maior autonomia de forças irregulares em Angola terá resultado das re (...)

16É provável que face a um território tão vasto e a um cenário tão complexo de guerra, tendo como particularidade a competição entre três movimentos de libertação, a aposta em diversas forças africanas tenha sido interpretada como uma vantagem acrescida para a força portuguesa19.

  • 20 Correia (2000), «A participação local no desenvolvimento das campanhas…», p. 148. Parece que também (...)

17Em Moçambique, para além das unidades regulares, também foram criados Grupos Especiais que chegaram a ser oitenta e cinco ao todo, bem como Grupos Especiais de Pisteiros de Combate (GEPC) e Grupos Especiais de Paraquedistas (GEP). Também se considera que todos estes grupos eram formados por voluntários, operando especialmente na sua zona de residência20.

  • 21 Antunes (1995), A Guerra de África…, Vol. I, p. 398.

18Foi sobretudo a partir do mandato de Kaúlza de Arriaga, como Comandante-Chefe das Forças Armadas em Moçambique, que se atribuiu maior protagonismo à tropa africana na guerra, mas fundamentalmente no sentido de superar a redução de efetivos provenientes de Portugal. Até aí, o protagonismo dos africanos em Moçambique limitara-se à sua ação na força regular ou nas milícias em autodefesa das populações21.

  • 22 Criadas em finais de 1964, desenvolveram-se sobretudo a partir de 1968 (Afonso e Gomes (2005), Guer (...)
  • 23 Em 1965 foi criado o Centro de Instrução de Comandos em Angola. Nos três territórios em guerra, as (...)

19Por sua vez, na Guiné as forças irregulares tinham a designação oficial de milícias22, embora algumas tenham passado pela designação de caçadores nativos, e podiam ser normais ou especiais. As primeiras eram reservadas à autodefesa da população e em 1966 já existiam dezoito formadas em companhias. As segundas foram criadas pelo General Spínola e eram organizadas em grupos de combate. Spínola não se limitou a introduzir esta mudança nas forças operacionais da Guiné. O que o distinguiu, e que constituiu um caso que não se repetiu nos outros dois territórios, foi ter procurado que as distinções entre os soldados portugueses e locais terminassem, argumentando que a discriminação dos africanos envolvia riscos para Portugal. Outra especificidade do seu mandato foi ter criado os comandos africanos, uma força de elite estruturada de modo semelhante às unidades de comandos já existentes na Guiné e nos outros dois territórios em guerra. Na Guiné, essas forças eram exclusivamente formadas por africanos, incluindo os seus oficiais, e tiveram um papel determinante em operações levadas a cabo não só no seu território de origem, mas também na Guiné Conacri e no Senegal. A Guiné foi também o único território onde foram constituídos dois destacamentos de fuzileiros especiais africanos23.

20Assim, se nos primeiros anos das guerras os africanos foram preteridos nas FAP ao mesmo tempo que, os que as integravam, na sua generalidade, desempenhavam papéis que não contribuíam diretamente para o sucesso das operações, nas vésperas do fim das guerras a situação era totalmente diferente. A par do aumento do número de efetivos locais nas FAP, verificou-se uma tendência crescente em atribuir-lhes um lugar de destaque, particularmente na Guiné onde os militares locais podiam ser graduados oficiais e comandar certas unidades, nomeadamente a dos comandos africanos. Lugar de destaque que, inclusive, foi instrumentalizado pela propaganda ideológica do regime no sentido de legitimar a manutenção do seu poder em África, em particular para manifestar, à nação portuguesa e à comunidade internacional, a aplicação de uma política integracionista adequada a uma nação pluricontinental e plurirracial.

A desmobilização dos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas

21Com o 25 de abril de 1974, iniciam-se os processos de negociação das independências. Estes processos revelam, por um lado, uma diversidade de tensões e de lutas pelo poder entre diferentes grupos cujas divergências, há muito, se faziam sentir sobretudo em Angola, mas também em Moçambique e na Guné. Por outro lado, as negociações acontecem num contexto em que, entre as autoridades portuguesas, não existia ainda consenso relativamente às independências dos territórios africanos. Assim, é num contexto de descolonização complexo e conturbado, que assumiu contornos muito particulares em cada um dos territórios africanos que tinham sido palco das guerras de libertação, que a situação dos combatentes africanos das FAP, ainda incorporados ou que já tinham passado à disponibilidade, foi objeto de negociações.

22Em termos gerais, os processos de desmobilização dos combatentes africanos dependeram de uma conjugação de fatores que variaram conforme os três territórios. As funções que foram atribuídas aos combatentes africanos durante as guerras coloniais, bem como as características particulares que assumiram os diversos movimentos de libertação envolvidos na luta e nas negociações pelas independências dos territórios africanos foram decisivos na forma como decorreram as negociações relativas à desmobilização desses combatentes. Por sua vez, o facto das negociações para as independências terem decorrido, num primeiro momento, sob a possibilidade da implementação da tese federalista defendida por Spínola também não pode ser ignorado no desfecho de alguns dos processos em causa. Por fim, a posição favorável ao fim da guerra num Portugal que procurava romper com todos os resquícios do regime responsável pelos últimos anos de política colonial não é alheia à forma como se equacionaram e aconteceram as desmobilizações dos combatentes africanos no seio das negociações de transferência de poderes para as independências dos territórios africanos.

23Angola foi o território onde as particularidades dos movimentos de libertação que participaram na luta e nas negociações pelas independências, bem como na posterior conquista pelo poder desse novo Estado, foram decisivas quanto à desmobilização dos soldados africanos das FAP assim como quanto à sua posterior integração a partir da sua independência. As rivalidades entre os movimentos de libertação, que já se faziam sentir durante as guerras coloniais, rapidamente evoluíram para uma guerra civil onde as antigas forças africanas das FAP foram recursos preciosos para engrossar os exércitos envolvidos. Embora durante a sua desmobilização os antigos combatentes das FAP em Angola fossem considerados potenciais ameaças ao novo regime por parte dos movimentos de libertação presentes nas negociações, a guerra civil acabou por evitar que fossem discriminados e perseguidos. Situação que contrastou com o que aconteceu em Moçambique e na Guiné. Na Guiné estes homens foram alvo de perseguições, de detenções e de execuções enquanto em Moçambique foram objeto de ‘internamento’ e de ‘purificação’.

24Quanto a Moçambique, onde, no final da guerra, o número de efetivos africanos das FAP atingiu os valores mais elevados comparativamente aos de Angola e da Guiné, se, por um lado, durante as desmobilizações, a FRELIMO – único movimento de libertação envolvido nas negociações ao contrário do que aconteceu em Angola –, considerava que estas forças constituíam uma ameaça ao futuro regime daquele novo Estado, por outro lado, os registos analisados revelam que a sua desmobilização decorreu sem perturbações, o que pensamos poder relacionar-se com os confrontos que eclodiram em Moçambique ainda durante os Acordos de Lusaca. Estes poderão ter contribuído para desviar a atenção que se prestava aos antigos combatentes africanos das FAP. Num contexto em que pairava a ameaça do nacionalismo branco sobre o futuro da independência de Moçambique, o carácter racial, que estes confrontos assumiram, poderá ter contribuído para que a importância dada à pertença a anteriores estruturas coloniais fosse minorada face à pertença à condição de africano.

  • 24 A FRELIMO criou campos de trabalho que ficaram conhecidos por campos de reeducação. Neles eram inte (...)
  • 25 Jossias, Elias (2007), Entre a Colónia e a Nação: Moçambicanos Deficientes Físicos das Forças Armad (...)
  • 26 Jossias (2007), Entre a Colónia e a Nação …, pp. 33-37.

25Isto não significa, contudo, que com a independência de Moçambique estes antigos combatentes não tenham sido objeto de discriminações. À semelhança do que terá sucedido a milhares de homens e mulheres considerados inimigos do projeto nacional em Moçambique na época marxista-leninista, muitos desses antigos combatentes terão sido «internados» nos campos de reeducação24. Considerados indispensáveis para a construção de uma sociedade nova que sustentaria o projeto nacional e que começaria pela destruição das antigas estruturas e mentalidades coloniais, estes campos destinavam-se ao internamento de todos aqueles que a FRELIMO julgasse comprometidos e/ou colaboradores com o regime colonial, traidores ao movimento ou inimigos do povo. Após um período de internamento, os condenados saíam ‘purificados’ e aptos a integrar a nova sociedade. Para além do internamento nestes campos, esses ‘inimigos’ do novo regime eram sujeitos a rituais de exposição pública, tais como aqueles em que pessoas ‘purificadas’ eram apresentadas em comícios populares simbolizando a sua transformação em «homens novos». Além disso, a FRELIMO estabeleceu «[...] o prazo de 15 de dezembro de 1978, para que todas as instituições do Estado, as empresas estatais e os bairros de residência, afixassem as fotografias e as biografias dos comprometidos»25. Durante os primeiros anos de independência, o ‘povo’ e os grupos de vigilância populares eram motivados a detetar os inimigos e os comprometidos com o colonial-fascismo26.

26Foram estas as situações a que foram sujeitos, em Moçambique, alguns antigos combatentes e que, tudo indica, tenham perdurado, pelo menos, até 1982, ano da realização da «Reunião dos Comprometidos», presidida pelo próprio Samora Machel. Símbolo da conversão dos comprometidos em «homens novos» e da sua integração na sociedade moçambicana, nesta reunião, que decorreu durante vários dias de maio e junho, participaram suspeitos de serem membros de instituições coloniais tais como da PIDE/DGS, do Partido Ação Nacional Popular, do Movimento Nacional Feminino, entre outros. Segundo Jossias, os militares das FAP não foram chamados a apresentar-se exceto os que pertenceram às forças especiais, designadamente os antigos GE, os GEP e os Comandos que, tal como os outros, depuseram os seus testemunhos publicamente. Além dos dados biográficos que os identificavam, dos seus depoimentos constava, também, a história do seu envolvimento no sistema colonial, única via, segundo Samora Machel, de se libertarem do seu passado e de poderem, então, transformar-se em compatriotas.

  • 27 Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, PROV.67, 945.

27Três anos antes desta reunião dos comprometidos, Samora Machel já ordenara a libertação de antigos militares portugueses. Uma carta endereçada ao Ministro dos Negócios Estrangeiros português, datada de 20 de novembro de 1979, informava-o que Samora Machel, num discurso proferido em Demba, referiu a libertação de aproximadamente 600 indivíduos dos chamados campos de reeducação existentes naquela província entre os quais «[…] alguns PIDES, alguns Comandos, GE, GEP, OPV, Flechas, alguns Sipaios, drogados, marginais, violadores de menores, ambiciosos, [...]»27.

  • 28 Jossias (2007), Entre a Colónia e a Nação…, p. 34.

28Assim, em Moçambique, se num primeiro momento as formas de punição e de purificação aplicadas aos antigos combatentes, bem como a muitos outros homens e mulheres não necessariamente associados ao sistema colonial, tenham sido, sem dúvida, medidas excludentes e discriminatórias, a reunião dos comprometidos poderá, segundo Jossias, ter representado «[...] o culminar do processo de (re)integração e de reconciliação da sociedade moçambicana, entre «compatriotas» e «traidores», num momento em que era preciso prestar maior atenção aos novos inimigos: a guerra civil [...] e a confrontação com a África do Sul»28.

  • 29 Coelho, Paulo B. (2003), «Da violência colonial ordenada à ordem..., p. 191 e Jossias (2007), Entre (...)

29Por sua vez, esta guerra, que em 1976 assolou o Moçambique, opondo o Exército Moçambicano à Resistência Nacional Moçambicana (RENAMO), com o apoio da Rodésia e do Exército Sul-africano, poderá ter contribuído para que muitos desses antigos combatentes tenham integrado essas forças que, durante dezasseis anos, combateram as novas autoridades moçambicanas. Por outro lado, essa nova guerra também poderá ter constituído o motivo pelo qual alguns destes antigos combatentes, em particular alguns antigos Comandos, tenham sido selecionados para integrarem forças especiais das Forças Populares de Libertação de Moçambique (FPLM)29.

30Em suma, em relação a Moçambique para além da especificidade que a luta pela libertação assumiu, apurou-se que a ameaça do nacionalismo branco, a nova guerra que entretanto eclodiu, juntamente com a implementação de uma política marxista-leninista foram os principais fatores interferentes na integração dos antigos combatentes a partir da sua independência. Neste território, as situações em que ficaram os antigos combatentes de origem moçambicana foram diversificadas e parecem ter variado, também, conforme o tipo de unidades das FAP às quais pertenceram. A confirmação destas considerações, que aqui constituem hipóteses exploratórias, necessitaria de uma pesquisa essencialmente centrada nessa problemática.

31Quanto à Guiné, embora o processo de negociação da transferência de poderes tenha sido menos controverso do que o de Moçambique e sobretudo o de Angola, em contrapartida foi o território onde a desmobilização dos soldados africanos registou mais problemas e onde, após a independência, os antigos combatentes mais sofreram as consequências por terem pertencido à força colonial. Se o facto de existir um único movimento de libertação envolvido nas negociações para a transferência de poderes poderá ter contribuído para que a possibilidade dos antigos combatentes africanos integrarem o novo exército nacional fosse posta de parte, tal como aconteceu em Moçambique, considera-se que o papel que lhes foi atribuído durante a guerra, sobretudo nos seus últimos anos, constituiu um dos fatores que mais terá condicionado o desenrolar dos episódios conturbados da sua desmobilização e que evoluíram para situações dramáticas em certos momentos da história da Guiné independente.

  • 30 Sobre estas suspeitas e os problemas de desmobilização desses combatentes consulte-se Rodrigues (20 (...)

32Ainda durante as negociações os combatentes africanos das FAP, especialmente os comandos, começam a ser objeto de várias suspeitas segundo as quais estariam a preparar-se para apoiarem uma invasão a Bissau30. Situação que não chegou a verificar-se antes da assinatura do Acordo de Argel.

33A assinatura desse acordo não significa, porém, que o processo de desmobilização dos africanos das FAP tenha decorrido sem percalços.

  • 31 Sobre esta matéria consulte-se Rodrigues (2012), Antigos Combatentes Africanos das Forças Armadas…, (...)

34Os problemas com os antigos combatentes africanos da Guiné começam quando as autoridades portuguesas procedem ao seu desarmamento, seguindo o estipulado no Acordo de Argel. Algumas unidades começaram por recusar-se a entregar as suas armas mas acabaram por fazê-lo após lhes serem dadas certas garantias31.

  • 32 Um telegrama de outubro de 1974, enviado pelo encarregado do Governo da Guiné ao CEMGFA, indica que (...)

35Pouco tempo após a partida dos portugueses, começaram as discriminações, as perseguições, a prisão e a execução de antigos combatentes das FAP de origem guineense32.

  • 33 Afonso e Gomes (2005), Guerra Colonial…, p. 447.

36Nesse território, embora as forças africanas tenham sido sempre em menor número do que em Angola e em Moçambique, o seu envolvimento na guerra foi de grande destaque, sobretudo desde que se formaram os comandos africanos. Mas o lugar de destaque que lhes foi atribuído na guerra não decorreu, unicamente, do facto de terem sido formadas, na Guiné, unidades exclusivamente compostas por africanos, incluindo os seus comandantes, nem tão pouco por terem participado em numerosas operações de carácter ofensivo. Também em Angola e em Moçambique a africanização das FAP se intensificou à medida que a guerra se prolongou, ao mesmo tempo que o papel atribuído aos combatentes africanos foi assumindo maior relevância. O que distingue as forças africanas na Guiné foi a sua integração num «[...] projecto político destinado a alterar o status quo existente»33.

  • 34 Coelho (2003), «Da violência colonial ordenada…», p. 184.
  • 35 Segundo Florindo Morais, aquando da sua desmobilização, os comandos africanos «[...] exigiam que o (...)

37O protagonismo concedido às forças africanas na Guiné enquadrava-se no projeto mais amplo, defendido por Spínola, relativamente à posição portuguesa em África, consubstanciado na tese federalista que expôs, publicamente, na sua obra Portugal e o Futuro e que acabaria por ser responsável pelo seu afastamento do cargo de vice-chefe do Estado Maior General das Forças Armadas. O destaque dado às tropas africanas na Guiné servia essa tese na medida em que permitia promover a ideia de que eram os próprios africanos, guinéus, que defendiam e lutavam pela manutenção da presença portuguesa em África. E fê-lo criando uma espécie de «exército africano «nacional» [...] tendo em vista provavelmente uma futura federação de Estados de língua portuguesa»34. A crescente autonomia atribuída à força africana na Guiné, em conjugação com os «Congressos do Povo», figura que promovia a ideia da participação do povo da Guiné na administração colonial, e sustentado pelo programa «Por uma Guiné Melhor», campanha psicológica baseada na convicção que a vitória portuguesa, pelo menos nesse território, se faria com base no desenvolvimento socio-económico, permitiu a Spínola lançar as bases da sua tese federalista, aquando da sua passagem pela Guiné enquanto Governador e Chefe das Forças Armadas promovendo a ideia da ‘Guiné para os Guinéus’35.

38Assim, o tipo de ameaça que os combatentes africanos das FAP representavam para o PAIGC na altura das negociações era, por si, diferente do que se verificava em Angola e em Moçambique, já que simbolizavam, de algum modo, uma resistência à transferência de poderes, e uma eventual terceira força que, nas negociações, favoreceria a tese federalista.

39A influência de Spínola no desenrolar dos acontecimentos na Guiné, relativamente aos antigos combatentes africanos, não terminou, contudo, com a independência desse território, que só aconteceu após ele ter promulgado a Lei 7/74 que consagrava o direito à independência dos territórios ultramarinos, nem com a sua demissão do cargo da presidência da república após os seus diferendos com o Movimento das Forças Armadas (MFA). O 11 de março de 1975, que marca a última tentativa dos spinolistas ocuparem o poder em Portugal, ditou, se não de facto, pelo menos em termos discursivos, mais uma vez, a vida dos antigos combatentes africanos das FAP na Guiné, ao ser associado ao início da intensificação das perseguições e dos fuzilamentos daqueles combatentes.

  • 36 Pormenores sobre a perspetiva e atuação de Spínola quanto à descolonização podem ser esclarecidos e (...)

40Assim, no caso da Guiné, a política colonial de Spínola deve ser considerada uma figura central na compreensão dos contornos que assumiu a desmobilização dos combatentes africanos das FAP no final da guerra. A sua influência, em relação a esta matéria, começou, sem dúvida, com a sua intervenção na Guiné enquanto seu Governador e Comandante-chefe das Forças Armadas, onde estabeleceu uma relação de proximidade muito particular com os combatentes africanos. No final da guerra, o facto de Spínola se ter mantido fiel à sua tese federalista36 não pode ser ignorado quer nas desconfianças e acusações dirigidas aos antigos combatentes africanos que, durante as negociações eram vistos como apoiantes ou promotores de supostas tentativas de invasões e tomadas de poder, quer em relação ao 11 de março de 1975, data que é associada aos fuzilamentos na Guiné e que, dificilmente, poderá deixar de ser interpretada como uma consequência do fracasso do golpe spinolista em Portugal.

41Em termos comparativos, a análise apresentada permite, então, concluir que a desmobilização e a posterior integração dos antigos combatentes nos novos Estados africanos assumiu contornos diferentes conforme um conjunto de circunstâncias e de condições prevalecentes nos três territórios quer ao longo das guerras, quer nos primeiros anos das suas independências. As particularidades dos movimentos de libertação em cada território africano, durante as guerras de libertação e as negociações para a transferência de poderes, bem como a luta pela conquista do poder dos Estados africanos independentes protagonizada por grupos rivais, foram duas dessas condições. A necessidade de apressar as negociações, derivada quer de circunstâncias particulares de cada um dos territórios africanos, quer da realidade política que se vivia em Portugal e das pressões internacionais a que estes estavam sujeitos, também não pode ser ignorada sobretudo no que respeita os processos de desmobilização dos combatentes africanos.

42Além desses fatores, pensamos que os papéis e sobretudo o destaque que foram atribuídos aos combatentes africanos das FAP na defesa da manutenção da presença colonial portuguesa durante a Guerra também contribuíram para as situações que viveram alguns desses homens nos seus territórios de origem.

  • 37 A hipótese de trazer antigos combatentes africanos só foi colocada em relação aos comandos da Guiné (...)

43A pesquisa efetuada revelou, ainda, que durante as negociações com os movimentos de libertação as delegações portuguesas mostraram preocupar-se com a situação em que ficariam esses antigos combatentes africanos, mas a solução que acabou por se sobrepor a qualquer outra foi a de deixar esses homens nas suas terras natais, mesmo sabendo que o mais provável seria virem a sofrer retaliações por parte das populações e, sobretudo, por parte dos poderes instituídos37.

  • 38 Santos, Boaventura de Sousa (1993), «Modernidade, identidade e a cultura de fronteira», Tempo Socia (...)

44A forma como se ponderou a situação dos antigos combatentes africanos não será alheia à realidade política portuguesa da época, nem tão pouco à forma como decorreu o processo de descolonização dos territórios africanos. A este propósito Boaventura de Sousa Santos observa que «É verdade que o Portugal revolucionário não pôde ou não quis controlar o processo da independência como o fizeram as potências coloniais centrais, mas é também duvidoso que o pudesse controlar mesmo que o quisesse»38. Esta dificuldade em controlar os processos de independência poderá ter contribuído para que o futuro dos antigos combatentes tenha sido deixado à mercê das vontades dos Estados independentes africanos.

Algumas observações finais

45A análise apresentada revela que, ao longo da última guerra que travou em África, o Estado português foi ajustando e reajustando a sua política colonial relativa à incorporação e utilização dos africanos nas suas Forças Armadas conforme as suas necessidades e os obstáculos que foi enfrentando, ao mesmo tempo que o seu discurso foi usando a figura desses combatentes para legitimar a manutenção da sua presença colonial naquele continente.

46Com o final da guerra, mostrámos como os processos de desmobilização dos combatentes africanos dependeram de uma conjugação de fatores que variaram conforme os três territórios.

47Em Angola, os antigos combatentes africanos das FAP foram desmobilizados tal como se previu no Acordo estabelecido entre Portugal e os movimentos de libertação envolvidos. Se, nesse processo, Portugal foi acusado de ter apoiado a integração de muitos desses homens nas forças do MPLA, a guerra civil, que se instalou nesse território, acabaria por ser responsável pelo recurso a estes antigos combatentes das FAP também por parte dos outros movimentos beligerantes. Deste modo, em Angola, a guerra civil terá constituído uma oportunidade, para esses antigos combatentes, de se integrarem e de participarem nesse novo contexto que inaugurava a Angola pós-colonial. Situação que contrastou com o que sucedeu em Moçambique e na Guiné.

48Em relação a Moçambique, os dados sugerem que, se num primeiro momento, a ameaça do nacionalismo branco se tenha sobreposto a outros aspetos considerados possíveis elementos perturbadores do projeto nacional liderado pela FRELIMO, entre os quais o número muito elevado de antigos combatentes africanos das FAP naquele território, posteriormente a implementação de uma política marxista-leninista foi responsável pela discriminação, pela exposição pública, e pelo internamento de muitos desses homens. Mas, à semelhança do que sucedeu em Angola, a nova guerra que, entretanto, eclodiu em Moçambique, terá sido também ela responsável pela integração de antigos combatentes no seio das forças que entretanto se digladiaram.

49Na Guiné- Bissau os dados expostos indicam que o papel que foi atribuído a estes combatentes durante a guerra, sobretudo nos seus últimos anos, constituiu um dos principais fatores responsáveis pelo desenrolar dos episódios conturbados da sua desmobilização e das situações dramáticas que se verificaram nos primeiros tempos da Guiné independente. A importância dada às tropas africanas durante a guerra, e que servia muito particularmente os interesses federalistas de António Spínola ao promover a ideia de que eram os próprios guinéus que lutavam a favor da manutenção da presença portuguesa contra um movimento de libertação – o PAIGC – que era oportunamente identificado com uma força oriunda de Cabo-Verde que pretendia ocupar o território, terá, assim, contribuído para que alguns destes homens tenham sido perseguidos, detidos e executados nos primeiros anos da Guiné-Bissau independente.

50Apesar das especificidades que caracterizaram os processos de negociação das independências relativos a Angola, a Moçambique e à Guiné-Bissau e as respetivas desmobilizações dos combatentes africanos das FAP, o que se verificou, de facto, foi que Portugal decidiu deixar estes homens nos seus territórios natais onde tinham combatido a favor da manutenção da força colonial. Embora o Estado português não se tenha demitido totalmente das suas responsabilidades em relação a estes homens, comprometendo-se a pagar indemnizações e reformas, e atribuindo pensões de sangue aos familiares dos que morreram em combate, durante a transferência de poderes entre Portugal e os novos Estados, a lógica utilizada por Portugal foi, contudo, a de desprezar os perigos que os ameaçavam. Ao deixar os antigos combatentes africanos das suas Forças Armadas nos seus territórios natais, estes homens foram abandonados por um Portugal que menosprezou a ameaça que o legado colonial que incorporavam representava para as suas vidas. Assim a lógica colonial, segundo a qual o Outro é um mero instrumento que sustenta estruturas de poder, foi substituída por uma lógica onde parece ter imperado a necessidade do Estado português expurgar-se de qualquer herança colonial perturbadora do seu novo projeto nacional.

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Notas

1 Sobre os valores apresentados ver, por exemplo, Sachetti, António (2000), «A acção da armada nas campanhas de África», in Adriano Moreira et al. (orgs.) Estudos sobre as Campanhas de África (1961-1974), S. Pedro do Estoril, Edições Atena e Instituto de Altos Estudos Militares, pp. 205-224; Teixeira, Rui de A. (2006), Guerra de África – Angola 1961-1974, Matosinhos/Lisboa, QuidNovi, p. 86 e Antunes, José F. (1995), A Guerra de África (1961-1974), Vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, p. 710.

2 Souto, Amélia Neves de (2007), Caetano e o Ocaso do «Império»: Administração e Guerra Colonial em Moçambique durante o Marcelismo (1968-1974), Porto, Afrontamento, p. 105.

3 Segundo os dados disponíveis, ao todo foram recrutados 1.367.896 homens. 443 649 desses homens faziam parte do recrutamento local (Portugal, Estado Maior do Exército (1988), Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, vol. I, Lisboa, Comissão para o Estudo das Campanhas de África, p. 261).

4 Isto sem contar com algumas das forças chamadas irregulares ou auxiliares que não fazem parte dos dados que acabámos de apresentar. Sobre estes dados, ver Correia, Pedro Pezarat (2000), «A participação local no desenvolvimento das campanhas. O recrutamento africano», in Adriano Moreira et al. (orgs.) Estudos sobre as Campanhas de África (1961-1974), S. Pedro do Estoril, Edições Atena e IAEM, pp. 143-153, pp. 147-149.

5 Cann, John (2005), Contra-Subversão em África: como os Portugueses fizeram a Guerra em África – 1961-1974, Lisboa, Prefácio, pp. 105-127; Coelho, João Paulo B. (2002) «African troops in the portuguese colonial army, 1961-1974: Angola, Guinea-Bissau and Mozambique», Portuguese Studies Review, 10 (1), pp. 129-150; Afonso, Aniceto e Gomes, Carlos de Matos (2005), Guerra Colonial, Cruz Quebrada, Editorial Notícias.

6 A africanização da guerra não parece ter sido acompanhada pela diminuição do número de mortos de soldados oriundos de Portugal. Sobre estes dados consulte-se Correia (2000), «A participação local no desenvolvimento das campanhas…», p. 146 e Cann (2005), Contra-Subversão em África…, pp. 125-126.

7 Coelho (2002) «African troops in the portuguese colonial army...», p. 140.

8 Afonso e Gomes (2005), Guerra Colonial…, p. 339.

9 Castelo, Cláudia (1999), «O Modo Português de Estar no Mundo». O Luso-Tropicalismo e a Ideologia Colonial Portuguesa (1933-1961), Porto, Afrontamento, pp. 61-62.

10 Destacam-se as comemorações do 10 de junho, onde foram condecorados diversas vezes publicamente combatentes africanos pelos serviços prestados à Nação.

11 Efetuou-se uma pesquisa empírica à imprensa portuguesa publicada entre o início da guerra até ao 25 de abril de 1974. Aqui apresentam-se, apenas, algumas conclusões gerais dessa pesquisa. Para saber pormenores sobre esses dados consulte-se Rodrigues, Fátima (2012), Antigos Combatentes Africanos das Forças Armadas Portuguesas – A Guerra Colonial como Território de (Re)conciliação, tese de doutoramento, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, doc. policopiado, p. 80, pp. 93-94, pp. 137-148.

12 Em 1974, segundo a Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África, eram 22 800 o total dos homens que compunham o conjunto de todas as forças irregulares dependentes do Exército. Pezarat Correia estima que estes, juntamente com os homens de todas as outras forças irregulares dependentes de outras entidades, perfariam um total de 26 000 homens, os quais, somados aos efetivos do recrutamento local (61 816), dariam 87 816 homens, número que ultrapassa os efetivos da metrópole que no mesmo ano eram de 87 274 (Correia (2000), «A participação local no desenvolvimento das campanhas…», p. 147, p. 149).

13 Criadas em 1966, sob a autoridade da PIDE/DGS, as Tropas Especiais emergiram em Cabinda quando Alexandre Taty, membro fundador da UPA, se entregou às autoridades portuguesas com 1 200 homens. Foram dezassete grupos no total, estando dezasseis ativos em 1974. Para conhecer pormenores sobre a sua origem, a forma como se aliaram às forças portuguesas e onde e como com elas operaram, ver Coelho (2002), «African troops in the portuguese colonial army…», pp. 140-148 e Antunes, José Freire (1995), A Guerra de África (1961-1974), Vol. I, Lisboa, Círculo de Leitores, pp. 449-458.

14 Estes grupos estavam normalmente sob comando militar, tinham o mesmo treino das tropas regulares, eram vocacionados para atuarem na sua zona de residência e eram frequentemente utilizados como reforços de companhias e batalhões (Antunes (1995), A Guerra de África…, Vol. II, p. 575; Afonso e Gomes (2005), Guerra Colonial…, p. 185). Entre os noventa e nove grupos especiais formados em Angola, noventa e seis estavam ativos no final da guerra (Coelho, João Paulo B. (2003), «Da violência colonial ordenada à ordem pós-colonial violenta: sobre um legado das guerras coloniais nas ex-colónias portuguesas», Lusotopie, p. 186 e Coelho (2002), «African troops in the portuguese colonial army…», p. 141)].

15 Formados por refugiados catangueses que chegaram a Angola em 1967. Os Fiéis foram organizados em companhias de caçadores. Em 1974 existiam dezasseis companhias, e atuavam na zona militar Leste de Angola (Coelho (2003), «Da violência colonial ordenada à ordem...», p. 187 e Coelho (2002), «African troops in the portuguese colonial army…», pp. 141-142).

16 Formados por refugiados da Zâmbia que chegaram a Angola em 1967. Foi constituída apenas uma companhia de Leais que, como os Fiéis, atuavam na zona militar Leste e estavam sob as ordens da PIDE/DGS. Sobre mais particularidades dos Leais consulte-se, por exemplo, (Coelho (2003), «Da violência colonial ordenada à ordem...», p. 187, p. 193 e Coelho (2002), «African troops in the portuguese colonial army...», p. 142, p. 143, p. 146, p. 149).

17 Os Flechas surgem em 1966 e, ao contrário dos Leais e dos Fiéis, eram de origem angolana, mais precisamente do Cuando-Cubango. Estes chegaram a uma dúzia de grupos organizados, instruídos e controlados pela PIDE/DGS, podendo atuar sob controlo do comando militar. Segundo Correia, estes três grupos vieram a ter um verdadeiro peso operacional na área da Zona Militar Leste de Angola (Correia (2000), «A participação local no desenvolvimento das campanhas..., p. 148).

18 Antunes (1995), A Guerra de África…, Vol. II, pp. 925-931; Afonso e Gomes (2005), Guerra Colonial…, pp. 340-341.

19 Segundo Coelho, o aumento e a maior autonomia de forças irregulares em Angola terá resultado das relações que o comandante-chefe da região militar de Angola em 1970, o General Costa Gomes, conseguiu estabelecer entre a PIDE/DGS e a esfera militar por um lado, e da criação de uma coligação entre Portugal e a UNITA contra o MPLA e a FNLA por outro (Coelho (2002), «African troops in the portuguese colonial army…», pp. 142-143).

20 Correia (2000), «A participação local no desenvolvimento das campanhas…», p. 148. Parece que também se experimentou a formação de uma força tipo Flechas. Ver Coelho (2002) «African troops in the portuguese colonial army..., pp. 145-146 e Antunes (1995), A Guerra de África…, Vol. I, pp. 407-412.

21 Antunes (1995), A Guerra de África…, Vol. I, p. 398.

22 Criadas em finais de 1964, desenvolveram-se sobretudo a partir de 1968 (Afonso e Gomes (2005), Guerra Colonial…, p. 340). Essa força chegou a atingir os 9 000 homens e Carlos Fabião, que se distinguiu como seu responsável na segunda comissão que cumpriu na Guiné, atribui-lhes 60% dos êxitos militares nesse território no final do conflito. Organizou-as de modo a ligar os soldados à sua terra natal. Para conhecer pormenores acerca da organização e desempenho destas forças, leia-se Antunes (1995), A Guerra de África…, Vol. I, pp. 363-367).

23 Em 1965 foi criado o Centro de Instrução de Comandos em Angola. Nos três territórios em guerra, as companhias de comandos tiveram uma ação destacada. Na Guiné, os comandos vieram a constituir um batalhão comandado por Almeida Bruno (Carneiro, António (2000), «As transformações nas Forças Armadas para responder às exigências do conflito em África», in Adriano Moreira et al. (orgs.), Estudos sobre as Campanhas de África (1961-1974). S. Pedro do Estoril: Edições Atena e Instituto de Altos Estudos Militares, p. 94; Antunes (1995), A Guerra de África…, Vol. II, pp. 713-722).

24 A FRELIMO criou campos de trabalho que ficaram conhecidos por campos de reeducação. Neles eram internados indivíduos provenientes das mais diversas situações, como por exemplo médicos tradicionais como se pode ler em Meneses, Paula (2004), «Maciane F. Zimba e Carolina J. Tamele: os percursos e as experiências de vida de dois médicos tradicionais moçambicanos», in Boaventura de Sousa Santos e Teresa Cruz e Silva (orgs.), Moçambique e a Reinvenção da Emancipação Social, Maputo: Centro de Formação Jurídica e Judiciária, pp. 111-114.

25 Jossias, Elias (2007), Entre a Colónia e a Nação: Moçambicanos Deficientes Físicos das Forças Armadas Portuguesas, Lisboa, ISCTE, doc. Policopiado, pp. 37-38.

26 Jossias (2007), Entre a Colónia e a Nação …, pp. 33-37.

27 Arquivo Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, PROV.67, 945.

28 Jossias (2007), Entre a Colónia e a Nação…, p. 34.

29 Coelho, Paulo B. (2003), «Da violência colonial ordenada à ordem..., p. 191 e Jossias (2007), Entre a Colónia e a Nação…, p. 41.

30 Sobre estas suspeitas e os problemas de desmobilização desses combatentes consulte-se Rodrigues (2012), Antigos Combatentes Africanos das Forças Armadas …, pp. 174-190.

31 Sobre esta matéria consulte-se Rodrigues (2012), Antigos Combatentes Africanos das Forças Armadas…, pp. 174-190.

32 Um telegrama de outubro de 1974, enviado pelo encarregado do Governo da Guiné ao CEMGFA, indica que «[...] começam a verificar-se discriminações sociais por parte do PAIGC em relação a antigos elementos da força africana recentemente desmobilizados [...]» (Arquivo da Defesa Nacional, cx. 818-P4). Para conhecer alguns testemunhos relativos aos fuzilamentos consulte-se Gonçalves, Hugo (2005), «E depois do Adeus», Revista Atlântico, Página consultada em 18 de março 2008. http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2005/12/e_depois_do_ade.html; 2005, e Bernardo, Manuel Amaro (2007), Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros; Guiné 1970-1980, Lisboa, Prefácio.

33 Afonso e Gomes (2005), Guerra Colonial…, p. 447.

34 Coelho (2003), «Da violência colonial ordenada…», p. 184.

Um documento datado de novembro de 1971, enviado por Spínola, mostra como ele pretendia progressivamente substituir a tropa metropolitana, pelo menos a Especial, pela africana. Nesse documento, após elogiar as duas primeiras companhias de comandos africanas, Spínola informa sobre o levantamento de uma terceira e manifesta, explicitamente, a vontade de estas passarem a substituir as companhias de comandos oriundas da metrópole. Arquivo da Defesa Nacional: cx. 6812.

35 Segundo Florindo Morais, aquando da sua desmobilização, os comandos africanos «[...] exigiam que o General Spínola cumprisse a sua promessa: a Guiné para os Guinéus, e exigiam mesmo a sua presença para lhes fazer a entrega da Guiné» (in Bernardo, Manuel Amaro (2007), Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros..., p. 294).

36 Pormenores sobre a perspetiva e atuação de Spínola quanto à descolonização podem ser esclarecidos em Santos, António Almeida (1998), «A Revolução e a Questão Colonial. Que descolonização?», in Fernando Rosas (coord.), Portugal e a Transição para a Democracia (1974-1976). I Curso Livre de História Contemporânea, Lisboa: Edições Colibri, pp. 107-136 e Martelo, David (2001), Cessar-Fogo em África. Mem Martins: Publicações Europa-América, pp. 79-93; pp. 111-139.

37 A hipótese de trazer antigos combatentes africanos só foi colocada em relação aos comandos da Guiné. Sobre esta matéria consulte-se Bernardo (2007), Guerra, Paz e Fuzilamentos dos Guerreiros…, e Gonçalves (2005), «E depois do Adeus…»,

38 Santos, Boaventura de Sousa (1993), «Modernidade, identidade e a cultura de fronteira», Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, S. Paulo, 5 (1-2), p. 45.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Fátima da Cruz Rodrigues, «A desmobilização dos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas da Guerra Colonial (1961-1974)»Ler História, 65 | 2013, 113-128.

Referência eletrónica

Fátima da Cruz Rodrigues, «A desmobilização dos combatentes africanos das Forças Armadas Portuguesas da Guerra Colonial (1961-1974)»Ler História [Online], 65 | 2013, posto online no dia 13 abril 2015, consultado no dia 29 novembro 2024. URL: http://journals.openedition.org/lerhistoria/484; DOI: https://doi.org/10.4000/lerhistoria.484

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Autor

Fátima da Cruz Rodrigues

fatimadacruzrodrigues@gmail.com
Professora da Faculdade de Arquitetura e Artes (ULP) e investigadora no Centro de Estudos Sociais (FE-UC).

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