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Full text of "Uma visita ao primeiro romancista portuguez em S. Miguel de Seide" Skip to main content

Full text of "Uma visita ao primeiro romancista portuguez em S. Miguel de Seide"

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Digitized  by  the  Internet  Archive 

in  2010  with  funding  from 

University  of  Toronto 


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http://www.archive.org/details/umavisitaaoprimeOOpime 


ALBERTO  PIMENTEL 


UMA  VISITA 


AO 


PRIMEIRO  ROMANCISTA  PORTUGUEZ 


EM 


S.  MIGUEL  DE  SEIDE 


'  :VRÂRIA  PORTUENSE  DE  LOPtS  &  C.^-EDITORES 
119  —  Kiia  do  Almada  —  12^ 


ALBERTO  PIMENTEL 


UMA  VISITA 


AO 


PRIMEIRO  ROMANCISTA   PORTUGUEZ 


tsi 


S.  MIGUEL  DE  SEDE 


PORTO 

LIVRARIA  PORTUENSE  DE  LCPES  &  C.*-EDITORES 
119  —  Rua  do  Almada—  123 

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PORTO— IMPRENSA  POKTUfiUUZA— BOMJARDIM,  181 


UMA  VISITA 


AO 


PRIMEIRO  ROMANCISTA  PORTUGUEZ 


EIvI    S.    IVLia-XJEXj    XDE    SEIDB 


Eram  onze  horas  da  maiilià.  Acabava, 
na  egreja  de  Santo  Thyrso,  a  missa  do  dia. 
Para  o  largo  do  mosteiro  vinham  sahindo 
os  ranchos  dos  homens  e  das  mulheres  do 
campo ;  algumas  senhoras,  poucas.  A  ma- 
nhã tinha  estado  fresca,  segundo  me  disse- 
ram, mas  eu  perdi  a  manhã,  pela  simples 
razão  de  ter  perdido  a  noite  no  arraial  da 
Senhora  das  Dores,  na  Trofa,  aonde  condes- 
cendentemente  me  deixei  arrastar.  Quando 
sahi  de  casa,  seguido  pelo  criado  que  le- 
vava de  rédea  a  garrana,  o  sol  descobria. 
A  consciência  de  não  ter  nascido  fadado 
para  cavallarias  altas,  obrigou-me  a   ir  a 


pé  nté  um  sitio  quo  julguei  propicio  para 
me  lançar  a  cima  do  sellim  sem  grande 
concurso  de  pul)lico. 

O  criado  dizia-me  cpie  nào  conhecia 
besta  mellior  do  que  a  garrana. 

—  Muito  fiel!  accrescentava  elle,  inspi- 
rando-me  confiança,  e  descendo  os  estribos. 

Para  além  da  ponte,  cavalguei. 

Pareceu-me  que  effec  ti  vãmente  a  garra- 
na tinha  apreciáveis  prendas  de  caracter; 
entreguei-me  á  sua  lealdade,  e  posso  asse- 
verar que  não  foi  desmentida,  durante  todo 
o  dia,  por  nenhum  incidente  desagradável. 

É  a  besta  mais* honrada  com  que  tenho 
lidado.  O  criado  tinlia  razão. 

—  A  que  horas  estaremos  em  S.  Miguel 
de  Seidei-  perguntei  eu  ao  Bernardo  do 
João  de  Deus,  nome  e  alcunha  do  meu  com- 
jtanheiro,  para  estabelecer  dialogo,  visto 
que  a  garrana  não  podia,  por  um  erro  da 
uatureza,  conversar  comigo. 

— D'aqui  a  uma  hora,  n'este  passo,  res- 
pondeu elle.  De  Landim  lá,  é  um  instante. 

Landim!  rci)cti  eu  meutalmente. 

Estava,  pois,  nos  vastos  domínios  ro- 
mânticos de  Camillo,  no  proscénio  florido 
das   suas   Novcllas   do  Minho,    unia    das 


;> 


qiines  se  intitula  O  rcrjo  de  Landim.  Á  mi- 
nha direita  tirava  Monte  Córdova,  de  cuja 
bruxa  o  eminente  romancista  escrevera  a 
commovente  historia. 

O  sol  descobrira  de  todo;  os  seus  raios, 
como  flechas  de  oiro,  cahiam  sobre  os  cam- 
pos, doirando-os.  O  calor  principiava  a  ser 
intenso. 

O  criado  ralhou  comigo  amoravelmente. 

Que  se  eu  me  tivesse  levantado  mais 
cedo,  ponderava  elle,  não  apanharia  tama- 
nha calma.  E  depois  podia  ser  que  eu  não 
estivesse  habituado.  Finalmente,  accrescen- 
tcira  que  o  sr.  visconde,  prevenido  da  mi- 
nha visita,  de  certo  me  teria  esperado  para 
o  almoço. 

Que  me  importava  a  mim  a  calma,  por 
maior  que  fosse?  Eu  ia  ver,  abraçar  aquelle 
que  sempre  fora  para  mim  o  mais  dedicado 
dos  mestres,  e  o  melhor  dos  amigos.  O 
acaso  que  durante  alguns  annos  nos  jun- 
tara, separara-nos  um  dia:  elle  ficara  qua- 
si  sempre  no  Minho;  eu  vivia  em  Lisl)oa. 
Havia  já  dez  annos  que  nos  não  avistára- 
mos. Por  isso,  ainda  que  se  tornasse  pre- 
ciso um  grande  sacrifício,  de  boa  vontade 
eu  o  teria  feito  para  comprar  a  felicidade 


G 


de  estar  alguns  inomeiítos  em  S.  ^liguei 
de  Seide. 

O  caminho  não  me  sahira  tão  cruel 
como  eu  esperava.  A  breve  trecho  havia  ar- 
vores que  dessem  sombra.  Em  torno  de 
mim,  para  qualquer  lado  que  lançasse  os 
olhos,  a  vegetação  era  opulenta,  feracissi- 
ma.  Os  meus  pulmões  fortificavam-se  com 
delicia  n'um  bom  banho  de  oxygenio.  E, 
por  antithese,  lembravam-me  os  saguões 
e  as  escadas  dos  prédios  da  baixa,  em 
Lisboa,  onde  se  respira  um  ar  mephitico, 
que  asphyxia.  De  longe  a  longe,  uma  casa 
e  um  parreiral ;  os  cachos  pendentes  da  la- 
tada davam  na  vista  ao  criado,  que  obser- 
vava : 

—  Vão  amadurecendo  bem,  graças  a 
Deus ! 

E  tirava  o  chapéu,  respeitosamente,  em 
homenagem  ao  Creador  dos  homens  e  dos 
cachos. 

Um  ou  outro  cão  vinha  ladrar-nos  ao 
muro  do  quintal. 

Bernardo,  todo  embevecido  na  contem- 
plação da  novidade,  dizia-me  que  reparasse 
nas  ramadas,  onde  as  travessas  de  madei- 
ra teem  sido  substituidas  por  fios  de  ara- 


me.  Uma  innovaçno  recentemente  introdu- 
zida no  Minho. 

—  Isto  —  o  arame  —  observava  o  Bernar- 
do, dura  a  vida  de  um  homem. 

O  calor  ia  apertando,  mordendo.  Eu,  de 
quando  em  quando,  aproveitava  a  sombra 
de  uma  arvore  para  accender  um  cigarro. 
A  garrana,  com  uma  grande  deferência 
pelas  minhas  commodidades  e  pelos  meus 
vicios,  esperava  pachorrentamente  que  eu 
embrulhasse  o  cigarro  e  o  accendesse.  Eu, 
em  compensação,  para  ser  grato,  sacudia- 
Ihe  as  moscas  com  a  ponta  da  vergasta.  E 
não  se  pense  que  me  custava  pouco  esta 
retribuição  amável  da  minha  parte :  as  mos- 
cas, enxotadas  da  garrana,  vinham  para 
mim.  Uma  mordeu-me  no  pescoço  com  a 
mesma  gana  com  que  o  teria  feito  á  caval- 
f;adura,  em  igual  sitio. 

Gonfundiu-nos!  o  diabo  da  mosca! 

O  Bernardo  pedira  licença  para  despir 
a  jaqueta.  Já  não  podia  aguental-a  com  o 
calor.  Ás  vezes  tirava  o  chapéu,  e  limpava- 
se.  A  sua  cara  escorria  ressumbraçòes  de 
suor.  Não  obstante,  o  Bernardo  acompa- 
nhava a  garrana  com  o  seu  passo  largo  e 
firme,  de  caminheiro  intrépido  e  experimen- 


8 


tndo.  Eu  disse-lhe  que  sentia  haver-Ihe 
dado  iucomiiiodo  cm  dois  dias  consecuti- 
vos, porque  na  véspera  fora  elle  de  Santo 
Tliyrso  a  Seide,  por  ordem  minha,  com 
uma  carta  para  o  visconde  de  Correia  Bo- 
telho, a  íim  de  me  certificar  de  que  o  en- 
contraria no  dia  seguinte. 

—  Isto  não  é  nada,  respondeu  o  Bernar- 
do. Pelo  S.  Thiago  fui  ao  Porto  e  vim,  no 
mesmo  dia. 

E  com  o  corpo  lançado  para  diante, 
meneiando  os  braços  n'uma  oscillacão  de 
pêndulo,  continuava  a  acompanhar  intre- 
pidamente a  garrana,  não  suando  menos 
do  que  ella. 

Elle  ia-me  nomeando  os  sítios  por  que 
passávamos: 

—  Isto  aqui  é  a  Fonte  da  Gallega. 
E  mais  adiante : 

—  Isto  aqui  é  a  egreja  da  Lama.  Uma 
freguezia  pequenita. 

Eu  perguntava : 

—  Landim  ainda  fica  muito  longe? 

—  Não,  senhor;  é  ali  adeante. 

E,  para  me  distrair,  por  conhecer  que 
eu  tinha  pressa  de  chegar,  armava  con- 
versa : 


—  Hdiitem,  q  11  mui  o  vim  trnzer  n  cnrta 
ao  sr.  visconde,  topei  perto  de  Lniidiíii  uma 
grande  bicha. 

—  Uma  cobra  ? 

—  Pois  é  mesmo.  Tomava  toda  a  lar- 
gura da  estrada.  Eu  não  gosto  de  encon- 
trar aquelJas  bichas.  Não  trazia  nada  co- 
migo, p(^r  isso  parei  para  a  deixar  passar. 

— Elhi  viu-o? 

—  Ella  viu-me,  mas  foi-se  andando.  En- 
fiou por  entre  umas  pedras  da  parede,  e 
desappareceu. 

E  após  um  breve  silencio: 

—  Estes  bichinhos,  dissera  o  Bernardo 
apontando  para  o  chão,  onde  um  formi- 
gueiro enorme  mourejava,  não  são  tão  mal- 
dosos. A  bem  dizer,  tirante  a  alma,  fel-os 
Deus  mais  amigos  do  trabalho  do  que  al- 
guns homens. 

Parei  a  garra  na,  e  olhei. 

Era  uma  alluvião  de  formigas  que  punha 
uma  nódoa  preta  e  ondulante  á  orla  da  va- 
leta. 

Ainda  na  véspera,  estando  eu  junto  á 
estação  de  Vizella,  á  espera  do  comboio  que 
devia  descer  de  Guimarães,  tinha  sido  im- 
pressionado por  uma  d'estas  o])SCuras  sce- 


10 


nos  de  realismo  campestre  em  que  os  pe- 
quenos insectos  avultam  na  grandeza  da 
sua  humildade...  Fora  também  uma  for- 
miga o  protogonista  silencioso  d'esse  rápi- 
do drama,  em  que  eu  íigurei  de  comparsa 
e  em  que  fiquei  pensando  o  bastante  para 
extrahir  d'elle  o  elevado  ensinamento,  que 
agradeci  á  natureza,  visto  que  tendo  de  espe- 
rar alguns  momentos,  julguei  que  nada  po- 
deria haver  ali  que  os  occupasse  utilmente. 

E  emquanto  o  comboio  não  chegava, 
uma  serie  de  pensamentos  imprevistos  fora 
alinhando-se  metricamente  no  meu  espirito 
e  acolchetando-se,  pensamento  a  pensa- 
mento, pela  attracção  mysteriosa  da  r-on- 
sonancia. 

Esses  versos,  que  só  teem  o  mérito 
único  da  espontaneidade  casual,  inspirados 
e  principiados  junto  a  estaçrio  de  Vizella, 
eram  horas  depois  concluidos,  postoque 
nào  limados.  Como  recordação  da  minha 
viagem  ao  Minho,  cujo  fim  princip.nl  fora  a 
visita  á  quinta  de  S.  Miguel  de  Seide,  tomo 
a  liberdade  de  offerecel-os  á  sr.^  D.  Anua 
Augusto  Plácido,  como  rústica  oblata  de- 
posta por  um  romeiro  sincero  no  altar  da 
amizade  antiga.  Intitulam-se: 


11 


Oh!  que  grarule  cobordin 
Esto  ein  quo  eu  ia  cahindo! 
Pobre  t'orinií,'a,  fugia! 
Com  que  pressa  ia  fugindo 
Toda  clieia  de  canseira, 
Pur  haver  roubado  da  eira 
De  loiro  trigo  uni  só  bago! 
K  eu  de  entretido  que  ia 
Ptir  uni  triz  qu»'  a  não  esmago  ! 


Som  querer,  era  cobarde. 
Mas  juro  por  minha  fé 
Que  passava  mal  a  tíirde 
Se  lhe  tenho  posto  o  pó. 


Que  a  formiga  é  tão  activa. 
Tão  mansa  e  laboriosa. 
Do  seu  trabalho  captiva. 
Do  seu  viver  cuidadosa! 
Passa  e  não  deixa  um  vestígio! 
Não  mancha  as  folhas  da  rosa! 
Chega  mesmo  a  ser  prodígio 
Que  um  tão  pequenino  insecto 
Que  se  arrasta  aos  pés  da  gente, 
Traltalhe  tão  diligente. 
Tão  delicado  e  discreto  I 


Ha  insectos  bem  maiores 
Que  vivem  na  mandriíce. 
São  panreas,  são  mandriões, 
E  dizem  co'os  seus  botões 
Que  o  trabalhar  ò  tolice. 


12 


A  ciparra  é  canfadoira, 

Não  faz  na<la  a  descu idosa. 

Por  mais  (jiie  a  goiite  a  condomno. 

A\r  o  I)(irn  L:  íbritaine 

Lá  lhe  cluiiuou  preg:u irosa. 

i\'ein  assim  se  enverí^onlioii ! 

Vive  inda  entregue  á  cantiga! 

Canta,  cantará,  cantou... 

E  talvez  até  (iiie  diga 

Vendo  a  formiga  cansada, 

Tão  activa  e  carregada: 

«Ora  a  lolu  da  furmigal» 


Mas  a  formiga,  coitada! 
Tão  pequenita,  que  até 
De  qualquer  criança  o  pé 
A  deixa  lt)go  esiuagada, 
Vae  lidando  a  sua  lida, 
SofTrendo  a  sua  cans!'ira: 
Aqui  vence  uma  barreira 

—  Alguma  hervinha  mimosa!  — 
Ali  transi)õe  um  barranco, 
Uma  monfanlia  a!tr'rosa, 

—  Qual<iuer  seixosito  bran^-o! 


Corre  risco  de  afogar-se 
Xo  oceano  temeroso 
De  (jualquer  gota  de  orvalho! 
Eu,  (juando  a  vejo  arrastar-se 
No  seu  lidar  canseiroso, 
DemiJigo  n'clla  o  Trabalho. 


E  oscuto  uma  voz  amiga 
Que  me  diz,  vendo-a  passar: 
«Tu  és  irmão  da  formiga 
«Na  condição  do  Ii<lai'.» 


i:^ 


o  mundo  é  vn^íto,  é  enorme 
E  os  prondes  foiiiQm-n'o  todo! 
O  rico  dosonnsn  o  dorme 
Ti^ndo  tlelicia.s.a  rodo. 
D'e.stii  rede  de  fírandeza 
Só  romiu?  o  espesso  tecido 
O  pol)re  que  na  pobreza 
Fòr  do  mais  pobre  doído. 


Lida  a  formií?a,  trabalha 
E  á  força  de  trab  ilhar 
Consejrue  que  a  dura  malha 
Ceda  para  ella  passar. 


«O  que  tu  tens  feito  é  isto. 
—  Diz  da  consciência  a  voz  sã, 
Sempre  sincera  e  amiiía  — 
«Deixa  passar  a  íormiíra, 
«Que  a  formiiía  é  tua  irmã.» 


«Grande  gloria  o  vencel-a 
«Quiindo  co'um  liaiío  de  trigo 
«Vae  passando  carregada! 
«VaiíUide!  h.ivia  <le  tel-a 
«O  grande  que  te  esmagasse 
«Na  tua  iide  suada!» 


Deixae  que  a  for  r.igi  passe 
Evitando  o  mar-orvalho 
E  a  coniilheiía-pedriniia. 
A  formiga  é  o  Traljuilio... 
Poupai-a,  se  ella  caminha. 


14 


Sem  íjuorcr,  era  cobarde. 
Ma.s  juro  por  minha  fé 
Que  passava  mal  a  tarde 
Se  lhe  tenho  posto  o  i)é. 


INÍois  adiante  ouvimos  o  estrondo  de 
morteiros  ao  longe. 

O  Bernardo  explicou: 

—  V]  alguma  romariasita  cm  Villa  Nova 
(Famalicão). 

Passado  o  Pinheiro  Torto,  avistamos, 
finalmente,  as  torres  do  mosteiro  de  Lan- 
dim. 

— Ainda  bem!  disse  eu. 

—  D'aqui  a  Seide  é  um  pulo. 

—  Desconfio  sempre,  objectei,  da  rapi- 
dez dos  pulos  que  os  senhores  dão  cá  pela 
província. 

—  Não,  senhor.  Estamos  aqui,  estamos 
lá. 

—  Que  tempo? 

—  Um  quarto  de  hora,  quando  muito. 
No  topo  de  uma  calçada,  das  Mesuras 

se  chama  ella,  levanta-se  o  mosteiro  de  Lan- 
dim. Eu  não  podia  perder  tempo  a  vèr  a 
egreja;  mas  disse-me  depois  Comillo  que 
nada  tinha  de  notável. 

Ao    passarmos    n'um    vasto    carvalhal 


.) 


sonil)i'io,  o  Beniardu  do  João  de  Deus  ex- 
plicou : 

— At[ui,  peln  .senhora  das  Candeias,  a 
dois  de  fevereiro,  í'az-se  uni  mercado  que 
nnette  gente  em  barda.  E  todo  esse  povoleo 
vae  caliir  além  n'aqnella  venda  a  comer  e 
a  hel)er. 

Olhei.  Á  porta  de  uma  taberna,  senta- 
dos á  sombra  de  uma  ramada,  quatro  ho- 
mens conversavam  na  sorna  placidez  dos 
ócios  domingueiros.  É  a  Casa  Havaneza 
do  sitio  —  com  menos  tabaco,  mas  talvez 
<-om  mais  animação:  a  venda  do  José  Ma- 
ria, successor  do  Fanlia. 

Que  fresca  e  encantadora  graça  a  d'um 
grupo  de  crianças,  todas  ellas  loiras  e  su- 
jas, que  brincavam  a  uma  sombra,  á  beira 
da  estrada,  no  sitio  das  Campas !  Se  as  la- 
vassem, se  as  penteassem,  ficariam  mais 
fidalgas;  mais  bellas  e  graciosas,  nào. 

O  calculo  do  Bernardo  fora  excedido  no 
duplo.  Tinha  passado  cerca  de  meia  hora, 
quando  elle  me  disse: 

— O  senhor  vè  aquellas  casas?  Pois  a 
quinta  de  Seide  fica  logo  ao  pé. 

Senti  precipitar-se  no  meu  coração  uma 
onda  de  sangue;  era  a  commoção  da  alegria. 


16 


Desembocomos,  íinolmente,  ii'iim  lorgo 
sobre  o  quol  nl)re  o  portHo  azul  da  quinta 
de  S.  M'giie]  de  Seide.  O  arvoredo  espreita 
para  fora  por  cima  do  muro.  Ladeámos  a 
casa,  de  dois  andares,  pintada  de  amarello, 
e  entramos  pela  porta  de  serviço,  onde  um 
criado  me  esperava. 

Passei  ao  vasto  pateo,  que  vi  de  relance, 
para  subir  a  escada  de  pedra,  que  uma  tre- 
padeira de  cacbos  brancos  enflora,  e  uma 
copada  acácia  assombreia. 

Esta  acácia  tem  uma  historia  triste. 
Fora  plantada  pelo  melancólico  Jorge,  o 
filho  mais  velho  de  Camillo,  que  eu  ainda 
conheci  ao  collo  da  ama,  e  que  momentos 
depois  ia  vèr. 

Haverá  pouco  mais  de  um  mez  que  to- 
dos os  jornaes  do  paiz  reproduziram  duas 
quadras  de  Camillo,  as  quaes  foram  publi- 
cadas na  Alvorada,  periódico  litterario  de 
Villa  Nova  de  Famalicão.  N'essas  duas 
bellas  estrophes,  que  se  devem  considerar 
como  norbida  phantasia  de  um  espirito  des- 
alentado, ha  uma  referencia  maviosa  a  esta 
frondosa  acácia  que  o  Jorge  plantara  aos 
oito  annos  de  idade: 


Á  porln  do  sppulci-o,  ainda  volto  a  fn«.-e 
>'apa  vér-t«'  chorar,  ó  mãf  «lo  filho  anuído, 
\)ue  vè  coino  n'um  sonho,  a  scena  do  trespasse 
Sorver-lhe  o  eterno  ahysuio  o  pae  idolatrado. 


Talvez  quo  oUe,  a  ífoufinr.  tedi^'a:  «Mãe,  não  clioro. 
Que  o  pae  lui  de  voltar».. .  Quem  sabe  se  virei?! 
guando  a  Aracia  do  Jorge  ainda  outra  vez  inflore 
Chamae-nie,  que  eu  de  abril  nas  auras  voltarei. 


O  visconde  de  Correia  Botelho,  ouvin- 
do a  minha  voz,  viera  rccel)er-me,  acom- 
panhado pelo  sr.  Espinho,  seu  hospede,  á 
porta  da  casa  do  bilhar. 

—  É  uma  visita  posthuma  I  dissera  elle, 
abrindo  para  mini  os  ]ji'aços  atTectuosa- 
mente. 

Dei-me  pressa  em  protestar  contra  estn 
phrase  devida  ao  desalento  de  um  trabalha- 
dor infatigável,  que  ha  mezes  se  acha  con- 
demnado  á  inércia  por  um  deplorável  acci- 
dente  cpie  lhe  nublou  os  olhos  já  cansa- 
dos de  uma  diuturna  applicação. 

Para  os  cpie  amam  o  trabalho,  os  ócios 
forçados  são  cansativos  e  molestos/  Pare- 
ceu-me  ser  esta  a  maior  enfermidade  de 
Camillo  actualmente.  Se  elle  podesse  tra- 
balhar, escrever  um  dos  seus  bellos  roman- 
ces em  quinze  dias,  como  tantas  vezes  íi- 


18 


zern,  se  conseguisse  por  esse  meio  arraii- 
car-se  á  intuscepção  meditativa  em  que  o 
seu  espirito  se  concentra,  tel-o-iamos  de 
novo  forte  na  sua  fraque/a,  robusto  no  seu 
cansaço. 

Mas  unia  pertinaz  nehrina  teima  em 
ennevoar-llie  a  visão;  é  de  esperar  porém 
que  a  medicina  consiga  debellar  este  in- 
commodo  e  restituir  o  eminente  romancista 
ú  sua  l»anca  do  traljalho,  que  lá  está  sau- 
dosa no  escriptorio  de  Seide,  recordando  a 
quem  a  \è  que  nem  menos  de  cincoenta  e 
dois  romances  foram  escriptos  ali. 

Ao  lado  de  Camillo,  compartindo  os  seus 
soffrimentos  com  uma  dedicação  heróica, 
acompanhando-o  com  uma  solicitude  extre- 
mosa de  carinhos,  destaca  o  vulto  escul- 
ptural  d'essa  intelligente  e  formosa  senhora 
que  tão  hom  soube  comprehender  a  grande 
alma  de  Camillo  nas  sublimes  melancolias 
dos  seus  dias  nublados  e  nas  vibrantes  ale- 
grias dos  seus  dias  ridentes. 

Jorge,  o  filho  mais  velho  de  Camillo,  é 
um  espirito  dado  a  vagas  tristezas;  mas 
atravez  de  um  véo  de  lagrimas,  que  ás  ve- 
zes lhe  marejam  nos  olhos  e  nas  palavras, 
descobre-se  um  talento  onniimodo,  rico  es- 


*.) 


pccialiiionlc  de  aptidões  artísticas.  Jorge  é 
poeta,  é  prosador,  é  musico  e  desenhista. 
Kii  devo-llie  a  amabilidade  de  me  ter  oíTe- 
recido  muitos  dos  esboços  que  enchem  a 
sua  pasta;  alguns  d'elles  teem  subido  valor, 
}>orque  são  o  retrato  a  crayon  dos  perso- 
nagens creados  por  seu  pae  no  Etisebio 
Macário:  o  Fistula,  o  Barão  do  Robarai, 
o  Abbade  de  S,  Thiar/o  de  Faija,  a  Tron- 
cha, o  próprio  Eusébio. 

Nuno,  o  viuvo,  tem  vinte  annos:  é  o 
pae  da  innocente  criança  cuja  prematura 
morte  deixou  aberto  no  coração  do  vis- 
conde de  Correia  Botelho  o  vácuo  profundo 
da  saudade. 

Camillo  fallara-me  da  sua  querida  neti- 
nha—  a  cândida  flor  que  durara  o  que  du- 
ram as  rosas,  apenas  uma  aurora. 

—  Aqui  estou,  dissera  Camillo,  na  soli- 
dão da  aldeia,  rodeado  de  arvores  melanco- 
Hcas,  e  de  pensamentos  tão  melancólicos 
como  as  arvores.  É  notável,  acrescentara, 
a  febre  de  saudade  com  que  o  meu  espirito 
vae,  pelo  passado  dentro,  á  procura  de  pes- 
soas que  são  já  mortas,  e  com  as  quaes 
aliaz  eu  tive  ligeiras  relações  litterarias  ou 
pessoaes.    É   revolvendo   memorias   que  o 


20 


ineu  espirito  trabalha  e  descansa . . .  Tudo 
isto  faz  profundamente  triste  esta  casa, 
onde  prematuramente  se  apagou  o  único 
raio  de  sol  que  podia  rarefazer  as  trevas. 
É  ainda  ao  periódico  Alvorada  que  eu 
vou  procurar  estancias  lacrimaveis  do  avô 
saudoso  c  angustiado.  Duas  quadras  —  tam- 
isem duas  quadras  —  de  uma  belleza  pere- 
grina, que  só  a  saudade  de  um  anjo  pôde 
inspirar: 

Píirecia  dormitar:  tinha  morrido. 
Pedi  que  a  não  levassem  no  caixão; 
Que  a  deixassem  mirrar  e  desfazer-se 
Como  a  flor  se  desfaz  sem  podridão. 


Teimaram  em  levar-m'a,  o  eu  cingi-ii 
Ao  peito  que  se  abriu  pela  pressão; 
Depois  pude  escondel-a,  e  tenho-a  morta 
No  meu  despedaçado  coração. 


Aproveitei  o  ensejo  de  dizer-lhe: 
—  Para  os  que  nunca  deixaram  de  o  lèr, 
e  o  sabem  comprehender,  meu  bom  amigo, 
não  passa  despercebido  esse  novo  caudal 
de  sentimento  que  dá  aos  seus  escriptos 
mais  recentes  o  encanto  dolorido  de  uma 
saudade  vaga  e  vaporosa  como  um  subtil 
aroma   (pie   se  derrama    polo  ambiente  da 


'21 


memoria  . . .  Puis  hem,  aproveite  esta  nova 
phase  do  seu  poderoso  talento,  as  tintas 
deliciosas  que  uma  copiosa  revivescência 
de  sensibilidade  pòe  n'este  momento  na 
sua  palheta  de  artista,  e  escreva  um  ro- 
mance de  amor,  sem  preoccupações  de  en- 
redo, ouvindo-se  a  si  próprio;  condense 
rrum  livro,  que  deve  sahir  encantador,  to- 
das essas  fragrâncias  que  se  perdem  no 
silencio  meditativo  do  seu  espirito... 

—  Nào  posso,  respondeu  Gamillo,  não 
poderia  arrancar  sensações  de  mim  pró- 
prio sem  um  esforço  fatigante.  Um  trabalho 
d'essa  ordem  deixar-me-ia  exhausto  de  for- 
ças. Eu  sentia  os  meus  romances,  e  foram 
muitos  os  que  escrevi.  Só  d'aquella  banca, 
que  ali  está,  sahiram  cincoenta  e  dois. 

Conversávamos  no  escriptorio,  que  fica 
no  segundo  andar.  É  uma  sala  vasta,  lumi- 
nosa :  três  ou  quatro  largas  janellas  abrem 
sobre  a  quinta. 

N'este  mesmo  andar  tem  Camillo  o  seu 
quarto  de  cama.  A  ramagem  da  acácia  do 
Jorge  e  a  folhagem  da  trepadeira  combi- 
na m-se  para  coar  atra  vez  de  esmeraldas 
uma  penumbra  suave. 

X(j  primeiro  andar  ha  duas  salas:  a  do 


o.> 


bilhar  cm  que  se  encontram  retratos  de  fa- 
mília; o  retrato  de  Herculano,  e  o  de  D. 
Frei  Bartliolomeu  dos  Martyres,  desenhado 
pelo  Jorge;— e  a  casa  de  jantar,  cujas  janel- 
las  dão  para  o  pateo,  a  que  já  tive  occasiào 
de  me  referir,  sem  comtudo  pagar  o  meu 
feudo  de  gratidão,  como  devia,  ao  peceguei- 
ro  frondoso  cujos  bellos  maracotões  eu 
agradeci,  ha  annos,  nas  chronicas  que  por 
esse  tempo  escrevia  para  o  Diário  IllUs- 
tvado. 

Fica  perto  do  prédio,  e  á  esquerda  do 
portão  de  entrada,  o  monumento  que  a  pro- 
prietária d'esta  agradável  vivenda  ali  man- 
dara erigir  em  honra  de  Castilho.  Essa  sin- 
gela pyramide  de  granito,  sombreada  de 
copadas  arvores,  tenho-a  aqui  reproduzida, 
diante  de  mim,  também  pelo  lápis  de  Jorge. 

Foi  penetrado  de  commovido  respeito 
que  eu  li  a  inscripção  posta  n'esse  simples 
monumento,  tão  eloquente  na  sua  simpli- 
cidade: 


ANTÓNIO 
FKIJCIANO 

DK 

CASTILHO 

PRINCIPE 

DA  LYRA 

PORTUGUEZA 

ESTEVE 
n'eSTE  LUGAR 

í:m  15  de  julho 
DE  18GG. 

MANDOU  ERIGIR 
ANNA  PLÁCIDO 

E  na  ffice  que  íi(^a  voltadíi  para  o  iiiiiro: 

COM 

os  SEUS 

DISCÍPULOS 

THOMAZ  RIBEIR(\ 

EUGÉNIO 

DE  CASTILHO, 

.1.    C.    VIEIRA  DE  CASTRO, 

C.   C.    BRANCO. 

Castilho  assistiu  á  inauguração  do  seu 
próprio  monumento,  e  os  filhos  de  Camill(->, 


1^1 


eiitrio  duos  rrinnçns,  ofTereccrani  oo  pootn 
venerondo,  em  seu  uonie,  n  r-oròa  poetio/i 
((ue  pnra  essa  commovente  festa  de  familia 
entretecera  a  lyra  eiithusiastica  de  Tlio- 
maz  Ribeiro: 


Por  entre  cantos  e  flores 
í-heiíaste,  rei  da  poesia, 
como  uni  clarão  (1'ale.í?ria 
jiirnuidõ  o]n  ninn^rio  (roniorp-;. 


Onde  ha  rei,  ha  sceptro  e  soh»»! 
Rei,  vimos  trazer-te  a  c'ròa. 
Tens  maior  corte  em  Lisboa, 
não  tens  melhor  capitólio. 


Somos  de  troncos  roliustos 
os  loiros,  os  tenros  gomos. 
Das  flores  surgirão  pomos? 
Se  Deus  regar  os  arbustos! 


Porque  és  grande,  hão  de  os  vin<loiros 
dar-le  a  sagração  dos  liymnos; 
I»oi'que  és  bom  para  os  meninos, 
toma  esta  c'r6a  de  loiros. 


Nossa  c'rôa  e  nossas  flores 
guarda  em  sjiudosa  memoria;  — 
o  monumento  é  da  gloria; 
)i  c'rô;i  é  só  (los  amores. 


L.  > 


Vaes  partir!  levu-a  oointigo, 

»'  jura  jior  teus  carinhos 

«[ue,  em  nós  já  senilo  homenzinhos, 

serás  nosso  mestre  e  amií^^o. 


Que  de  recordações  melancólicas  a  iii- 
scripção  do  monumento  e  os  versos  de  Tho- 
maz  Ribeiro  fizeram  accordar  na  minha 
alma ! 

Castilho,  o  poeta  ali  coroado  n'aquella 
apotheóse  tão  modesta  e  tão  gloriosa,  vi-o 
eu  descer  ao  seio  da  terra,  (fue  elle  tiinlo 
amava — no  seu  })antheismo  intuitivo  de  cego 
ariolo  —  ao  cahir  de  uma  tarde  serena  e 
triste,  no  cemitério  dos  Prazeres,  em  Lis- 
boa. 

Rodrigues  Cordeiro,  com  a  voz  entre- 
cortada de  lagrimas  e  soluços,  dissera-lhe, 
em  nome  de  todos  aquelles  que  o  amavam 
como  mestre  e  amigo,  o  extremo  adeus. 
Depois,  a  pedra  do  jazigo  cerrou-se,  a  bar- 
reira da  eternidade  ergueu-se. 

A  noite  descia  lentamente. 

As  crianças  das  escolas  da  capital,  que 
tinham  ido  acompnnhnr  ao  cemitério  o  ca- 
dáver d'aquelle  que  para  ellas  inventara  o 
Methodo  repentino,  d'aquelle  que  as  ensi- 
nni-a  ;i  gorgeinr  o  alplinbeto — porque  Casti- 


20 


llio  reconhecera  (pie  os  pequenos  precisoni 
ser  educados  coino  se  foram  pássaros— as 
crianças,  dizia  eu,  tendo  mais  a  intuição 
do  que  a  consciência  da  perda  enorme  que 
acabavam  de  soíTrer,  retiravam  arregimen- 
tadas, duas  a  duas,  em  longas  filas,  com 
os  olhos  no  chão,  n\im  silencií)  triste  e 
n'um  passo  cadenciado. 

Pouco  tempo  antes,  e  em  mais  de  uma 
noite,  eu  acompanhara  Castilho  ao  cama- 
rote n."  19  do  theatro  de  D.  Maria  durante 
as  representações  do  Tartufo.  Logo  que  o 
panno  cahia,  descíamos  ao  palco  a  passar 
os  intervallos  no  camarim  do  actor  Santos, 
que  o  visconde  de  Castilho  muito  apreciava. 
Castilho,  um  morto!  Santos,  um  cego!  Es- 
tas maguadas  recordações  travam-se  no 
meu  espirito  corno  os  elos  de  uma  cadeia 
de  saudades  que  o  confrangem. 

Evigenio  de  Castilho  nunca  o  vi ;  está 
algemado  ao  leito  ha  muitos  annos.  Mas 
correspondi-me  com  elle  por  intermédio  de 
seu  pae,  do  Porto  para  Lisboa,  quando 
emprehendeu  publicar  um  jornalsinho  litte- 
rario,  que  me  parece  ter-se  chamado  a  Fo- 
IJia  rios  curiosos,  e  me  pedia  versos  que  eu 
lhe  mandíiva,  or^íulhoso  ão  podido. 


L>7 


\  ieira  do  Cnstro,  talvez  o  mais  dcsgra- 
çndo  de  tudos,  conlieci-o  pela  primeira  vez 
no  Porto,  na  sala  da  sociedade  Pátria  e 
familia,  durante  um  sarau  litterario  em  que 
eu  ousei,  na  sua  presença,  e  na  de  todo 
um  auditijrio  nuiito  selecto,  recitar  um  pe- 
queno discurso  ({ue  alii  corre  impresso  en- 
tre a  minha  insigniticante  bagagem  de  es- 
criptor. 

Elle  habitava  n'esse  tempo  o  antigo  mos- 
teiro de  Moreira,  a  dois  passos  do  Porto, 
e  pul)licava  o  opúsculo  A  Republica.  Era 
casado  e  feliz.  Chamava-se-Ihe  então  o  pri- 
meiro orador  portuguez,  successor  de  José 
Estevam.  Tinha  sido  deputado,  creio  mes- 
mo que  o  era.  Seria  ministro  de  qualquer 
pasta  no  Tlia  seguinte.  E  quando  todos  es- 
peravam vel-o  chegar  aos  conselhos  da  co- 
roa, vimol-o  partir  para  o  degredo,  depois 
de  haver  tropeçado  no  cadáver  da  esposa 
que  assassinara. 

O  desgraçado  assistira  á  sua  própria 
queda,  que  tora  das  mais  estrondosas  em 
que  a  curiosidade  publica  se  tem  cevado. 

O  meu  thema,  as  Flores,  era  um  pre- 
texto para  fallar  do  amor.  Procurei  provar, 
com  mais  imaginaçà(^  do  que  sciencia,  que 


íis  flores  se  entendiam  amorosamente  como 
as  almas.  As  senhoras  applaudiam.  Os  ho- 
mens sorriam.  Meira  de  Castro,  sempre 
poeta,  abraçara-me.  E  eu,  no  dia  seguinte, 
dei  uma  péssima  hção  em  botânica  elemen- 
tar ao  professor  Almeida  Pinto,  do  ly- 
ceu. 

Os  filhos  de  Camillo  foram  homenzi- 
nhos, segundo  a  phrase  de  Thomaz  Ribei- 
ro. Hoje  são  homens.  ]\Ias  Castilho  já  lhes 
não  alcançara  o  penujar  do  buço.  E  se  elle 
vivesse  ainda,  talvez  que  o  melancólico 
Jorge,  concentrado  e  sonhador,  entendesse 
melhor  do  que  ninguém,  por  os  amigos  si- 
lêncios da  lua,  em  S.  Miguel  de  Seide,  al- 
guma trova  do  Amor  c  melancolia  que  o 
poeta  Castilho  viesse  de  Lisboa  ali  recitar 
ifaquellas  sombras  plácidas  que  aprende- 
ram a  venerar  o  seu  nome  em  torno  do  mo- 
numento singelo. 

Thomaz  Ribeiro,  o  eloquente  intérprete 
dos  filhos  de  Camillo  na  áurea  côrtesinha 
litteraria  que  Castilho  encontrara  em  S. 
Miguel  de  Seide,  é  em  1885  como  era  18(3t) 
um  poeta  cuja  inspiração  roça  as  azas  pela 
lagoa  sombria  dn  politica  sem  afundar-se, 
do  mesmo  modo  que  as  andorinhas,  pelas 


2\) 


cídiíias  dn  cíniiciiki,  esvoiíçam  sobre  a  cor- 
rente de  iiui  rio  sem  nicrgulliar. 

Logo  que  pôde  de8l)ragar-se  de  urna 
pasta,  respira  em  verso.  N'este  momento 
está  saboreando  o  goso  da  liberdade  litte- 
raria  no  sen  periódico  .4.s  Republicas,  em 
qne  os  relâmpagos  da  poesia  rasgam  lumi- 
nosamente o  horisonte  caliginoso  do  artigo- 
de-fnndo.  Não  contente  de  poetar  ellc  pró- 
prio, apadrinhou  o  alvitre  de  abrir  o  i  te  iro 
semanal  onde  versejadores  adventicios  con- 
corram a  glosar  trovas  populares,  como 
esta : 


Vi-te  saliir  ninr  em  fora, 
Ceyiiei,  olhando  esse  mar. 
Ponnie  me  disseste :— espera! 
Se  não  tinlias  de  volt.ir? 


E  o  mais  é  que,  pelo  prestigio  da  sua 
auctoridade,  consegue  tentar  aquelles  mes- 
mos que,  na  milicia  de  Apollo,  estão  rele- 
gados a  segunda  reserva.  Tentei-me  eu,  e 
sou  d'esses.  Mas  já  que  este  livrinho  é  de 
memorias  para  a  velhice,  fique  mais  esta 
guardada  no  archivo  da  saudade: 


:30 


(\   TIIOMAZ    RIBEIHO) 


Vi-te  síiliir  mar  cm  fora. 
E  a  saudade  que  eu  ?enti 
Rasgou-me  o  peiio  n'ess'hora 
Em  que  chorava  x>or  ti. 
A  ausência  tem  tantas  maguas. 
Tão  sofírida  lieroec idade. 
Tanto  resiste  quem  chora, 
Que  eu  puz  os  olhos  nas  aguas 
E,  sem  morrer  de  saudade, 
Vi-te  sahir  mar  em  fora. 


Ceguei  olliando  e^^se  mar 
Pleito  de  ondas  e  de  abrollios. 
Mas  que  importa  a  luz  dos  olhos, 
Se  não  tenho  a  quem  olhar?... 
Tanto  a  vista  me  prenderam 
As  ondas  que  tu  sulcavas. 
Que  os  olhos  escureceram 
No  rumo  em  que  navegavas. 
E  assim  por  ti  a  chorar, 
Ceguei  olhando  esse  mar. 


Porque  me  disseste:  espera! 
Na  hora  extrema,  derradeira, 
Se  já  veio  a  primavera, 
Se  já  floriu  a  amendoeira, 
E  tu  não  voltaste  ainda?! 
Se  este  mal  era  som  cura. 
Se  tinha  de  ser  infinda 
A  dôr  que  me  dilacera, 
A  auseni.ia  que  me  tortura. 
Porque  me  disseste:  espera?! 


:;i 


So  não  tinlias  de  voltar. 
Melhorou  niorre.-se  alli; 
Que  mais  valia  acabar. 
Que  ter  de  viver  stMii  ti. 
Não  ha  ror(;a  que  resista 
Á  dòr  (|ue  nunca  descança. 
Tivesse  eu  perdido  a  vista. 
Mas  não  penlesse  a  esperança. 
Bem  feliz  acabaria 
Alli,  á  beira  do  mar. 
Se  soubesse  o  que  seria. 
Se  não  tinhas  de  voltar. 

Ás  quatro  horas  da  tarde,  a  amabilissi- 
ma  auctora  da  Lii.^  coada  por  ferros  per- 
guntava-me  se  eii,  sacrificando  os  meus 
hábitos  Hsbonenses,  seria  capaz  de  jantar 
ciqtiella  hora. 

—  Em  Seide,  respondera  Camillo,  janta- 
se  sempre. 

Fomos  para  a  meza,  em  cujo  plateau 
verdejavam  as  fructas  mais  escolhidas  da 
quinta,  e  em  cujo  ambiente  os  acipipes  suc- 
colentos  de  uma  boa  cosinha  de  provincia 
punham  os  aromas  de  um  excellente  jantar. 

Camillo  estivera  silencioso  durante  al- 
ííuns  momentos.  jNIas  eu  procurara  envol- 
vel-o  na  conversação.  Fallava-se  dos  seus 
romances.  É  difficil  escolher  o  melhor  en- 
tre os  l)ons ;  mas  eu  })retendi  negar  a  pri- 
masia  do  Romance  de  am  liomem  rico,  por 


:\2 


saber,  desde  muito  teiupo;  que  CamilJo  o 
prefere  ao  Amo/'  de  perdição.  Todos  nós 
desejávamos  fazel-o  interessar  pelo  assum- 
l^to.  Foi  pois  em  defeza  do  Amor  de  per- 
dição que  eu  pugnei. 

— O  Amor  de  perdição,  observara  final- 
mente CamilJo,  tem  lacunas  que  eu  próprio 
reconheci,  e  não  quiz  preencher.  Disse-o 
por  essa  occasião  ao  dr.  Marcellino  de 
Mattos.  Mas  o  meu  propósito  foi  não  alte- 
rar a  veracidade  dos  acontecimentos  que 
se  encadeavam  na  dramática  biographia 
de  meu  tio  Simão  Botelho.  Escrevi  sobre  a 
tradição,  respeitando-a  como  um  evangelho 
de  familia.  No  Romance  de  um  Iiomem  rico 
tive  um  ponto  de  vista  artistico,  planeei  e 
architectei,  colori  em  vez  de  photographar. 
Eis  aqui  a  razão  da  minha  preferencia  dada 
ao  Romance  de  rim  Iiomem  rico  sobre  o 
Amor  de  perdição. 

Não  me  dispensei  comtudo  de  recordar 
a  profunda  impressão  que  este  ultimo  ro- 
mance produzira  em  todos  os  corações 
moços  d'aquel]c  tempo  ou  nos  que  pelo 
amor  rejuvenesciam.  Desvelavam-se  as  noi- 
tes na  febre  da  leitura,  e  reliam-se  as  pagi- 
nas mais  sentimentaes  nas  horas  de  namo- 


33 


radn  tristeza.  Gachi  qual  pedia  para  si  n  co- 
roa de  espinhos  de  Simão  Botcllio,  de  Tlic- 
reza  ou  de  Alarianna,  a  auréola  da  poesia 
nas  angustias  do  amor.  Amar  é  soíTrer.  E 
aquelle  livro  fallava  pelos  que  sotlriam.  Se 
a  tua  dòr  te  aftlige,  faze  d'ella  um  poema, 
disse  Goethe.  Ora  aquelle  romance  de  Ca- 
millo  era  o  poema  em  que  se  fundiam  as 
dores  de  todas  as  almas  excruciadas  pelo 
amor;  era  o  romance  de  ires,  e  o  poema 
de  todos. 

No  recolhimento  das  Orphãs,  a  S.  La- 
zaro, uma  das  pobres  meninas  ali  encarce- 
radas entre  as  grades  de  ferro  que  nos  últi- 
mos annos  foram  sensatamente  arrancadas, 
lia  o  Amor  de  perdição,  a  occultas  da  re- 
gente, entreabrindo  a  gaveta  da  sua  cóm- 
mo*da  apenas  o  bastante  para  alcançar  com 
a  vista  o  espaço  de  uma  pagina.  Lia  de  pé, 
e  fechava  com  sobresalto  a  gaveta  quando 
sentia  passos.  O  livro  nunca  foi  surprehen- 
dido,  mas  as  lagrimas  que  a  leitura  origi- 
nava, muitas  vezes  o  foram.  A  regente,  D. 
jNIaria  das  Dores,  via  chorosos  os  olhos  da 
menina,  e  perguntava-lhe  porque  chorava. 

—  É  que  estou  triste,  respondia  a  edu- 
canda. 


34 


Mas  as  tristezas  clava-lh'as  a  leitura  for- 
tuita do  romance  de  Gamillo. 

Favorecia-me  na  apologia  do  Amor  de 
perdição  o  voto  aiictorisado  da  intelligente 
e  illustrada  dona  da  casa,  que  depois  nos 
recordou  a  belleza  do  romance  O  Esque- 
leto. Eu  citei  por  minha  vez  A  agulha  era 
palheiro,  e  a  Sereia,  romance  que  tem 
para  mim  um  valor  especial,  porque  reúne 
para  a  minha  saudade  os  nomes  de  Gamillo 
Castello  Branco  e  José  Gomes  Monteiro. 
O  primeiro  capitulo  é  baseado  sobre  um 
artigo  de  Monteiro  acerca  do  antigo  thea- 
tro  lyrico  do  Porto,  no  Gorpo  da  Guarda. 

Accresce  que  o  meu  exemplar  da  Sereia 
tem  uma  historia  curiosa.  Na  capa,  sobre 
o  titulo,  ha  uma  pequena  mancha  de  tinta, 
que  tomou  a  forma  caprichosa  de  um  poly- 
gono  estrellado.  Um  dia,  sem  que  eu  sou- 
besse como,  desappareceu-me  da  estante; 
foram  baldados  todos  os  esforços  para  en- 
contral-o  no  meu  escriptorio.  Querendo  pre- 
encher a  falta  da  Sereia  na  collecçào  das 
obras  de  Gamillo,  resolvi-me  a  comprar  um 
novo  exemplar.  Mas  a  suspeita  de  ter  sido 
roubado,  fazia  com  que  eu  relanceasse  a 
vista   por  todos  os  romances  portuguezes 


.).> 


([iic  encontravíi  á  venda  uns  lojas  de  livros 
VIU  segunda  mão. 

Passaram  mczes,  e  um  dia,  n'uma  d'es- 
sas  lojas,  na  rua  Augusta,  encontrei  um 
exemplar  da  Sereia.  Tirei-o  da  estante  :  era 
o  meu!  Na  capa  amarella,  sobre  o  titulo,  o 
polygono  estrcllado,  o  borrão !  Perguntei 
quanto  custava.  Trezentos  reis,  resj)ondeu 
o  alfarrabista.  Paguei  sem  discutir.  Depois 
de  ter  pago,  perguntei-lhe: 

—  Lembra-se  de  quem  lhe  vendeu  este 
livro? 

O  alfarrabista  quedo u-se  a  evocar  as 
suas  recordações. 

Mas  devo  suppòr  que  não  poude  lein- 
brar-se. 

Depois  de  jantar,  viemos  sentar-nos  nos 
bancos  do  pateo.  A  tarde  estava  serena;  as 
folhas  das  arvores  immovei^.  O  viscon- 
de de  Correia  Botelho,  fumando  o  seu  cha- 
ruto, conversava  animado.  Lembrei-lhe  que 
fosse  passar  o  inverno  em  Lisboa,  entre  os 
muitos  amigos  e  admiradores  que  ali  tem. 
O  clima,  menos  rigoroso  que  o  do  norte, 
deve  convir  aos  seus  padecimentos.  Gamillo 
não  repelliu  o  alvitre.  Mas  o  projecto  de 
viagem  íicou  para  segunda  leitura,  quando 


3G 


ou  voltasse  a  Seide  para  despedir-me.  Com- 
})rometti-iiie  gostosamente  a  fnzcl-o,  e  es- 
]»(?r()  cumprir. 

A  tarde  declinava  ii'uma  suavidade  dor- 
mente. Os  pássaros  cantavam  no  arvoredo 
da  quinta,  n'uma  festa  de  lyrismo  primi- 
tivo. Junto  ao  monumento  de  Castilho  con- 
densava-se  uma  sombra  silenciosa,  como 
se  as  aves  não  poisassem  n'aquelle  recinto 
senão  para  chorar  o  ])octa  que  as  cantara. 

Eram  horas  de  partir.  Os  meus  amáveis 
hospedeiros,  e  os  seus  hospedes,  vieram 
acompanliar-me  ao  portão  da  quinta.  O 
visconde  procurara  apoio  no  meu  braço, 
ao  passo  que  a  sr.*  D.  Anua  Plácido  colhia 
para  mim  algumas  flores  do  seu  jardim, — 
recordação  inestimável  da  minha  visita  a 
Seide. 

Fora  do  portão  esperavam  respeitosa- 
mente o  Bernardo  do  João  de  Deus  e  a 
garrana.  Ambos  pareciam  satisfeitos:  elle 
porque  trazia  mais  vinho  verde  no  estô- 
mago, ella  porque  tinha  menos  moscas 
no  pescoço.  As  moscas  do  Minho  já  cu 
disse  que  são  formidáveis,  porque  lhes 
senti,  por  endosso  da  garrana,  a  dolorosa 
ferroada.    ^>   vinho   verde   de  S.  ^liguei  de 


3" 


Seide  é  de  se  lhe  tirar  o  cliapcu,  mesmo 
|)ara  que  o  chapéu  não  caia  da  cabeça  caso 
a  gente  se  tenha  desmandado  nas  libações. 
É  excellente  e,  por  ser  encorpado,  deve 
trepar:  —  pelo  menos,  o  Bernardo  do  João 
<le  Deus  foi  d'esta  opinião. 

Antes  de  montar,  pedi  a  Camillo  que  se 
não  risse  da  minha  impericia  de  cavalleiro. 

—  Oueni  lhe  dera  essa  garrana  no  Chia- 
do !  dissera  jovialmente  Camillo. 

—  Piedade!  exclamei  eu  sobre  o  sellim. 
A  garrana,  comprehendendo  melhor  as 

minhas  intenções  do  que  as  minhas  espo- 
ras, partiu. 

Eu  parti  com  ella,  e  o  Bernardo  do  João 
de  Deus  na  alheta  de  ambos. 

Em  Landim,  na  venda  do  José  Maria, 
conversavam  os  mesmos  quatro  homens. 

De  algumas  casas  subia  placidamente  o 
fumo  do  lar  accèso  para  a  ceia.  Em  outras, 
ouvia-se  fallar  mulheres,  chorar  crianças. 
Alguma  cabeça  loira,  sentindo  os  passos 
da  garrana,  vinha  espreitar  á  janella. 

Pouco  adiante  das  Campas,  dois  ])OÍs 
corpulentos,  largamente  armados,  pasta- 
vam em  liberdade,  com  o  ar  de  estarem  já 
bem  fartos  de  pascigo. 


38 


Á  medida  que  nos  aproximávamos  de 
Santo  Thyrso,  iamos  encontrando  os  ran- 
chos dos  romeiros  que  voltavam  do  arraial 
da  Trofa.  A  viola  minhota,  chuleira  e  fol- 
gasã,  cadenciava  a  caminhada  n'um  anda- 
mento militar,  como  os  rufos  de  um  tam- 
bor regulam  o  passo  largo  e  unisono  dos 
soldados  de  um  destacamento  em  marcha. 
O  tocador,  pendida  a  cabeça  sobre  o  peito, 
sacudia  a  mão  direita  fortemente  pelas  cor- 
das, n'um  repenicado  estridulo.  O  cami- 
nho de  ferro  de  Bougado  alliviara  os  ro- 
meiros da  fadiga  da  jornada.  Iam  frescos 
como  se  tivessem  bebido  menos  e  descan- 
sado mais. 

Que  diriam  os  bcnedictinos  de  Santo 
Thyrso  se  podessem  resuscitar,  e,  debruça- 
dos no  muro  da  cerca,  vissem  desenro- 
lar-se  por  sobre  o  arvoredo  fronteiro  a 
pluma  ondulante  do  fumo  da  locomoti- 
va?! 

Elles  viveram  ali  entrincheirados  entre 
a  villa,  que  engrandeciam,  e  o  rio,  que  os 
deliciava.  De  um  lado,  as  moçoilas  carnu- 
das e  carnaes;  do  outro,  os  rouxinocs  de- 
vaneiadores  da  beira  d'agua.  De  portas  a 
dentro,   a   cosinha   e  o  coro.   Tudo  aquillo 


39 


era  d'elles,  os  frades,  senhores  siizeranos 
das  localidades  que  povoavam, — directa  e 
indirectamente.  U  caminho  de  ferro  é  um 
invasor  audacioso,  que  passa  esmagando  e 
rompendo.  Os  frades,  se  agora  podessem 
ouvir-lhe  o  silvo  triumphal,  gritariam  ád'el- 
rei  contra  o  progresso,  apitariam  contra  a 
machina  a  vapor. 

No  relógio  dos  destinos  humanos  ha 
uma  hora  providencialmente  marcada  para 
tudo  o  que  principia  e  acaba.  De  modo 
que,  por  uma  sabia  organisaçào  superior  á 
nossa  intelligencia,  tudo  principia  e  acaba 
quando  deve  principiar  e  acabar.  Ao  frade 
que  comboyava  as  almas  para  o  ceu,  suc- 
cedeu  opportunamente  a  locomotora  que 
])assa  comboyando  passageiros  para  Gui- 
marães. Deus  é  grande ! 

Era  noite  fechada  quando  entrei  em 
Santo  Thyrso.  Valeu-me  a  escuridão  ao 
desprimor  da  gineta.  Não  havia  espectado- 
•  res,  e  a  garrana  alargava  o  passo,  contente 
de  se  vèr  perto  de  casa.  Apeei,  entregando 
a  chibata  ao  Bernardo  do  João  de  Deus, 
que  me  perguntou : 

—  E  que  tal,  a  garrana?  Não"  dizia  eu 
que  era  segura? 


AO 


—  Mais  seguro  do  que  isto,  respoufli, 
só  o  Banco  de  Portugal. 

EUe  não  entendeu;  por  isso,  riu. 

E  eu  recollii-me  com  as  gratas  recorda- 
ções d'esse  dia  agradabilissimo  que  passei 
na  quinta  de  S.  ^liguei  de  Seide,  sob  o 
tecto  hospitaleiro  do  primeiro  romancista 
portuguez,  entre  pessoas  queridas,  e  me- 
morias saudosas  de  que  tanto  havíamos 
íallado. 

Santo  Thyrso,  21  de  agosto  de  1885. 


Alberto  Pimentel. 


umm  PORiuENSE  [  mmm 


!))•; 


^LOPES   &  G.'^    SLCCESSORES  DE    CLA^  EL  &  C* 

^  EDITORES 

iiç  —  %U^4    'DO   ^4LV^C^T)^A  —  i2] 


<^tbcrto  Cimentei 


(NO   PRELO) 

O  Senhor  D.  Miguel  I— a  sua  vida  e  o  seu  tempo. 
Rainha  sem  reino— estudo  liislorico  do  século  xv 
Idylios  dos  reis— poema. 


Jutio  Sourenço  |3inta 


Esthetlca  naturalista — estudos  criticos,  \  volume  nitida- 
mente inipresso  eui  magnitico  papel,  700  róis. 


6rncf3to  |1tnta  (r^lmindíi 

o  Sonho  de  Camões  — poema  posfluimo,  edirão  de  luxo. 
Não  desnu-nMndi»  em  nada  a  í-ioria  c  o  merecimento  lit- 
terario  do  íallecido  po<'ta  portuense  ICrnesto  Pinto  d'Al- 
ineida,  antes  vem  a^'ora  este  poema  dar-nos  uma  medida 
maior  do  seu  estro  poético,  1  volume  nitidamente  im- 
jjresáo,  300  réis.  

llarri.so  5(oííí  de  |tIoraefj 

Manual  de  citações  camoneanas— indicador  ulilissimo  dos 
melliorcs  conceitos  c  apliorismos  do  sul)limc  cantor,  Luiz 
de  Camrics,  indispensável  ao  estudante  e  ao  novel  escri- 
ptor  i)0rtuiruez,  1  volume,  200  réis. 

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Trémulos— u)n  livro  de  primorosos  versos,  com  o  re- 
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Bailadas  do  Occidente— um  volume  brochado,  500  réis. 

rreto  7777  200  réis 


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PQ  Pimentel,    Alberto 

9261  Uma  visita  ao  primeiro 

ZyLl^  romancista  portiiguez 


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