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University of Toronto
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ALBERTO PIMENTEL
UMA VISITA
AO
PRIMEIRO ROMANCISTA PORTUGUEZ
EM
S. MIGUEL DE SEIDE
' :VRÂRIA PORTUENSE DE LOPtS & C.^-EDITORES
119 — Kiia do Almada — 12^
ALBERTO PIMENTEL
UMA VISITA
AO
PRIMEIRO ROMANCISTA PORTUGUEZ
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S. MIGUEL DE SEDE
PORTO
LIVRARIA PORTUENSE DE LCPES & C.*-EDITORES
119 — Rua do Almada— 123
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PORTO— IMPRENSA POKTUfiUUZA— BOMJARDIM, 181
UMA VISITA
AO
PRIMEIRO ROMANCISTA PORTUGUEZ
EIvI S. IVLia-XJEXj XDE SEIDB
Eram onze horas da maiilià. Acabava,
na egreja de Santo Thyrso, a missa do dia.
Para o largo do mosteiro vinham sahindo
os ranchos dos homens e das mulheres do
campo ; algumas senhoras, poucas. A ma-
nhã tinha estado fresca, segundo me disse-
ram, mas eu perdi a manhã, pela simples
razão de ter perdido a noite no arraial da
Senhora das Dores, na Trofa, aonde condes-
cendentemente me deixei arrastar. Quando
sahi de casa, seguido pelo criado que le-
vava de rédea a garrana, o sol descobria.
A consciência de não ter nascido fadado
para cavallarias altas, obrigou-me a ir a
pé nté um sitio quo julguei propicio para
me lançar a cima do sellim sem grande
concurso de pul)lico.
O criado dizia-me cpie nào conhecia
besta mellior do que a garrana.
— Muito fiel! accrescentava elle, inspi-
rando-me confiança, e descendo os estribos.
Para além da ponte, cavalguei.
Pareceu-me que effec ti vãmente a garra-
na tinha apreciáveis prendas de caracter;
entreguei-me á sua lealdade, e posso asse-
verar que não foi desmentida, durante todo
o dia, por nenhum incidente desagradável.
É a besta mais* honrada com que tenho
lidado. O criado tinlia razão.
— A que horas estaremos em S. Miguel
de Seidei- perguntei eu ao Bernardo do
João de Deus, nome e alcunha do meu com-
jtanheiro, para estabelecer dialogo, visto
que a garrana não podia, por um erro da
uatureza, conversar comigo.
— D'aqui a uma hora, n'este passo, res-
pondeu elle. De Landim lá, é um instante.
Landim! rci)cti eu meutalmente.
Estava, pois, nos vastos domínios ro-
mânticos de Camillo, no proscénio florido
das suas Novcllas do Minho, unia das
;>
qiines se intitula O rcrjo de Landim. Á mi-
nha direita tirava Monte Córdova, de cuja
bruxa o eminente romancista escrevera a
commovente historia.
O sol descobrira de todo; os seus raios,
como flechas de oiro, cahiam sobre os cam-
pos, doirando-os. O calor principiava a ser
intenso.
O criado ralhou comigo amoravelmente.
Que se eu me tivesse levantado mais
cedo, ponderava elle, não apanharia tama-
nha calma. E depois podia ser que eu não
estivesse habituado. Finalmente, accrescen-
tcira que o sr. visconde, prevenido da mi-
nha visita, de certo me teria esperado para
o almoço.
Que me importava a mim a calma, por
maior que fosse? Eu ia ver, abraçar aquelle
que sempre fora para mim o mais dedicado
dos mestres, e o melhor dos amigos. O
acaso que durante alguns annos nos jun-
tara, separara-nos um dia: elle ficara qua-
si sempre no Minho; eu vivia em Lisl)oa.
Havia já dez annos que nos não avistára-
mos. Por isso, ainda que se tornasse pre-
ciso um grande sacrifício, de boa vontade
eu o teria feito para comprar a felicidade
G
de estar alguns inomeiítos em S. ^liguei
de Seide.
O caminho não me sahira tão cruel
como eu esperava. A breve trecho havia ar-
vores que dessem sombra. Em torno de
mim, para qualquer lado que lançasse os
olhos, a vegetação era opulenta, feracissi-
ma. Os meus pulmões fortificavam-se com
delicia n'um bom banho de oxygenio. E,
por antithese, lembravam-me os saguões
e as escadas dos prédios da baixa, em
Lisboa, onde se respira um ar mephitico,
que asphyxia. De longe a longe, uma casa
e um parreiral ; os cachos pendentes da la-
tada davam na vista ao criado, que obser-
vava :
— Vão amadurecendo bem, graças a
Deus !
E tirava o chapéu, respeitosamente, em
homenagem ao Creador dos homens e dos
cachos.
Um ou outro cão vinha ladrar-nos ao
muro do quintal.
Bernardo, todo embevecido na contem-
plação da novidade, dizia-me que reparasse
nas ramadas, onde as travessas de madei-
ra teem sido substituidas por fios de ara-
me. Uma innovaçno recentemente introdu-
zida no Minho.
— Isto — o arame — observava o Bernar-
do, dura a vida de um homem.
O calor ia apertando, mordendo. Eu, de
quando em quando, aproveitava a sombra
de uma arvore para accender um cigarro.
A garrana, com uma grande deferência
pelas minhas commodidades e pelos meus
vicios, esperava pachorrentamente que eu
embrulhasse o cigarro e o accendesse. Eu,
em compensação, para ser grato, sacudia-
Ihe as moscas com a ponta da vergasta. E
não se pense que me custava pouco esta
retribuição amável da minha parte : as mos-
cas, enxotadas da garrana, vinham para
mim. Uma mordeu-me no pescoço com a
mesma gana com que o teria feito á caval-
f;adura, em igual sitio.
Gonfundiu-nos! o diabo da mosca!
O Bernardo pedira licença para despir
a jaqueta. Já não podia aguental-a com o
calor. Ás vezes tirava o chapéu, e limpava-
se. A sua cara escorria ressumbraçòes de
suor. Não obstante, o Bernardo acompa-
nhava a garrana com o seu passo largo e
firme, de caminheiro intrépido e experimen-
8
tndo. Eu disse-lhe que sentia haver-Ihe
dado iucomiiiodo cm dois dias consecuti-
vos, porque na véspera fora elle de Santo
Tliyrso a Seide, por ordem minha, com
uma carta para o visconde de Correia Bo-
telho, a íim de me certificar de que o en-
contraria no dia seguinte.
— Isto não é nada, respondeu o Bernar-
do. Pelo S. Thiago fui ao Porto e vim, no
mesmo dia.
E com o corpo lançado para diante,
meneiando os braços n'uma oscillacão de
pêndulo, continuava a acompanhar intre-
pidamente a garrana, não suando menos
do que ella.
Elle ia-me nomeando os sítios por que
passávamos:
— Isto aqui é a Fonte da Gallega.
E mais adiante :
— Isto aqui é a egreja da Lama. Uma
freguezia pequenita.
Eu perguntava :
— Landim ainda fica muito longe?
— Não, senhor; é ali adeante.
E, para me distrair, por conhecer que
eu tinha pressa de chegar, armava con-
versa :
— Hdiitem, q 11 mui o vim trnzer n cnrta
ao sr. visconde, topei perto de Lniidiíii uma
grande bicha.
— Uma cobra ?
— Pois é mesmo. Tomava toda a lar-
gura da estrada. Eu não gosto de encon-
trar aquelJas bichas. Não trazia nada co-
migo, p(^r isso parei para a deixar passar.
— Elhi viu-o?
— Ella viu-me, mas foi-se andando. En-
fiou por entre umas pedras da parede, e
desappareceu.
E após um breve silencio:
— Estes bichinhos, dissera o Bernardo
apontando para o chão, onde um formi-
gueiro enorme mourejava, não são tão mal-
dosos. A bem dizer, tirante a alma, fel-os
Deus mais amigos do trabalho do que al-
guns homens.
Parei a garra na, e olhei.
Era uma alluvião de formigas que punha
uma nódoa preta e ondulante á orla da va-
leta.
Ainda na véspera, estando eu junto á
estação de Vizella, á espera do comboio que
devia descer de Guimarães, tinha sido im-
pressionado por uma d'estas o])SCuras sce-
10
nos de realismo campestre em que os pe-
quenos insectos avultam na grandeza da
sua humildade... Fora também uma for-
miga o protogonista silencioso d'esse rápi-
do drama, em que eu íigurei de comparsa
e em que fiquei pensando o bastante para
extrahir d'elle o elevado ensinamento, que
agradeci á natureza, visto que tendo de espe-
rar alguns momentos, julguei que nada po-
deria haver ali que os occupasse utilmente.
E emquanto o comboio não chegava,
uma serie de pensamentos imprevistos fora
alinhando-se metricamente no meu espirito
e acolchetando-se, pensamento a pensa-
mento, pela attracção mysteriosa da r-on-
sonancia.
Esses versos, que só teem o mérito
único da espontaneidade casual, inspirados
e principiados junto a estaçrio de Vizella,
eram horas depois concluidos, postoque
nào limados. Como recordação da minha
viagem ao Minho, cujo fim princip.nl fora a
visita á quinta de S. Miguel de Seide, tomo
a liberdade de offerecel-os á sr.^ D. Anua
Augusto Plácido, como rústica oblata de-
posta por um romeiro sincero no altar da
amizade antiga. Intitulam-se:
11
Oh! que grarule cobordin
Esto ein quo eu ia cahindo!
Pobre t'orinií,'a, fugia!
Com que pressa ia fugindo
Toda clieia de canseira,
Pur haver roubado da eira
De loiro trigo uni só bago!
K eu de entretido que ia
Ptir uni triz qu»' a não esmago !
Som querer, era cobarde.
Mas juro por minha fé
Que passava mal a tíirde
Se lhe tenho posto o pó.
Que a formiga é tão activa.
Tão mansa e laboriosa.
Do seu trabalho captiva.
Do seu viver cuidadosa!
Passa e não deixa um vestígio!
Não mancha as folhas da rosa!
Chega mesmo a ser prodígio
Que um tão pequenino insecto
Que se arrasta aos pés da gente,
Traltalhe tão diligente.
Tão delicado e discreto I
Ha insectos bem maiores
Que vivem na mandriíce.
São panreas, são mandriões,
E dizem co'os seus botões
Que o trabalhar ò tolice.
12
A ciparra é canfadoira,
Não faz na<la a descu idosa.
Por mais (jiie a goiite a condomno.
A\r o I)(irn L: íbritaine
Lá lhe cluiiuou preg:u irosa.
i\'ein assim se enverí^onlioii !
Vive inda entregue á cantiga!
Canta, cantará, cantou...
E talvez até (iiie diga
Vendo a formiga cansada,
Tão activa e carregada:
«Ora a lolu da furmigal»
Mas a formiga, coitada!
Tão pequenita, que até
De qualquer criança o pé
A deixa lt)go esiuagada,
Vae lidando a sua lida,
SofTrendo a sua cans!'ira:
Aqui vence uma barreira
— Alguma hervinha mimosa! —
Ali transi)õe um barranco,
Uma monfanlia a!tr'rosa,
— Qual<iuer seixosito bran^-o!
Corre risco de afogar-se
Xo oceano temeroso
De (jualquer gota de orvalho!
Eu, (juando a vejo arrastar-se
No seu lidar canseiroso,
DemiJigo n'clla o Trabalho.
E oscuto uma voz amiga
Que me diz, vendo-a passar:
«Tu és irmão da formiga
«Na condição do Ii<lai'.»
i:^
o mundo é vn^íto, é enorme
E os prondes foiiiQm-n'o todo!
O rico dosonnsn o dorme
Ti^ndo tlelicia.s.a rodo.
D'e.stii rede de fírandeza
Só romiu? o espesso tecido
O pol)re que na pobreza
Fòr do mais pobre doído.
Lida a formií?a, trabalha
E á força de trab ilhar
Consejrue que a dura malha
Ceda para ella passar.
«O que tu tens feito é isto.
— Diz da consciência a voz sã,
Sempre sincera e amiiía —
«Deixa passar a íormiíra,
«Que a formiiía é tua irmã.»
«Grande gloria o vencel-a
«Quiindo co'um liaiío de trigo
«Vae passando carregada!
«VaiíUide! h.ivia <le tel-a
«O grande que te esmagasse
«Na tua iide suada!»
Deixae que a for r.igi passe
Evitando o mar-orvalho
E a coniilheiía-pedriniia.
A formiga é o Traljuilio...
Poupai-a, se ella caminha.
14
Sem íjuorcr, era cobarde.
Ma.s juro por minha fé
Que passava mal a tarde
Se lhe tenho posto o i)é.
INÍois adiante ouvimos o estrondo de
morteiros ao longe.
O Bernardo explicou:
— V] alguma romariasita cm Villa Nova
(Famalicão).
Passado o Pinheiro Torto, avistamos,
finalmente, as torres do mosteiro de Lan-
dim.
— Ainda bem! disse eu.
— D'aqui a Seide é um pulo.
— Desconfio sempre, objectei, da rapi-
dez dos pulos que os senhores dão cá pela
província.
— Não, senhor. Estamos aqui, estamos
lá.
— Que tempo?
— Um quarto de hora, quando muito.
No topo de uma calçada, das Mesuras
se chama ella, levanta-se o mosteiro de Lan-
dim. Eu não podia perder tempo a vèr a
egreja; mas disse-me depois Comillo que
nada tinha de notável.
Ao passarmos n'um vasto carvalhal
.)
sonil)i'io, o Beniardu do João de Deus ex-
plicou :
— At[ui, peln .senhora das Candeias, a
dois de fevereiro, í'az-se uni mercado que
nnette gente em barda. E todo esse povoleo
vae caliir além n'aqnella venda a comer e
a hel)er.
Olhei. Á porta de uma taberna, senta-
dos á sombra de uma ramada, quatro ho-
mens conversavam na sorna placidez dos
ócios domingueiros. É a Casa Havaneza
do sitio — com menos tabaco, mas talvez
<-om mais animação: a venda do José Ma-
ria, successor do Fanlia.
Que fresca e encantadora graça a d'um
grupo de crianças, todas ellas loiras e su-
jas, que brincavam a uma sombra, á beira
da estrada, no sitio das Campas ! Se as la-
vassem, se as penteassem, ficariam mais
fidalgas; mais bellas e graciosas, nào.
O calculo do Bernardo fora excedido no
duplo. Tinha passado cerca de meia hora,
quando elle me disse:
— O senhor vè aquellas casas? Pois a
quinta de Seide fica logo ao pé.
Senti precipitar-se no meu coração uma
onda de sangue; era a commoção da alegria.
16
Desembocomos, íinolmente, ii'iim lorgo
sobre o quol nl)re o portHo azul da quinta
de S. M'giie] de Seide. O arvoredo espreita
para fora por cima do muro. Ladeámos a
casa, de dois andares, pintada de amarello,
e entramos pela porta de serviço, onde um
criado me esperava.
Passei ao vasto pateo, que vi de relance,
para subir a escada de pedra, que uma tre-
padeira de cacbos brancos enflora, e uma
copada acácia assombreia.
Esta acácia tem uma historia triste.
Fora plantada pelo melancólico Jorge, o
filho mais velho de Camillo, que eu ainda
conheci ao collo da ama, e que momentos
depois ia vèr.
Haverá pouco mais de um mez que to-
dos os jornaes do paiz reproduziram duas
quadras de Camillo, as quaes foram publi-
cadas na Alvorada, periódico litterario de
Villa Nova de Famalicão. N'essas duas
bellas estrophes, que se devem considerar
como norbida phantasia de um espirito des-
alentado, ha uma referencia maviosa a esta
frondosa acácia que o Jorge plantara aos
oito annos de idade:
Á porln do sppulci-o, ainda volto a fn«.-e
>'apa vér-t«' chorar, ó mãf «lo filho anuído,
\)ue vè coino n'um sonho, a scena do trespasse
Sorver-lhe o eterno ahysuio o pae idolatrado.
Talvez quo oUe, a ífoufinr. tedi^'a: «Mãe, não clioro.
Que o pae lui de voltar».. . Quem sabe se virei?!
guando a Aracia do Jorge ainda outra vez inflore
Chamae-nie, que eu de abril nas auras voltarei.
O visconde de Correia Botelho, ouvin-
do a minha voz, viera rccel)er-me, acom-
panhado pelo sr. Espinho, seu hospede, á
porta da casa do bilhar.
— É uma visita posthuma I dissera elle,
abrindo para mini os ]ji'aços atTectuosa-
mente.
Dei-me pressa em protestar contra estn
phrase devida ao desalento de um trabalha-
dor infatigável, que ha mezes se acha con-
demnado á inércia por um deplorável acci-
dente cpie lhe nublou os olhos já cansa-
dos de uma diuturna applicação.
Para os cpie amam o trabalho, os ócios
forçados são cansativos e molestos/ Pare-
ceu-me ser esta a maior enfermidade de
Camillo actualmente. Se elle podesse tra-
balhar, escrever um dos seus bellos roman-
ces em quinze dias, como tantas vezes íi-
18
zern, se conseguisse por esse meio arraii-
car-se á intuscepção meditativa em que o
seu espirito se concentra, tel-o-iamos de
novo forte na sua fraque/a, robusto no seu
cansaço.
Mas unia pertinaz nehrina teima em
ennevoar-llie a visão; é de esperar porém
que a medicina consiga debellar este in-
commodo e restituir o eminente romancista
ú sua l»anca do traljalho, que lá está sau-
dosa no escriptorio de Seide, recordando a
quem a \è que nem menos de cincoenta e
dois romances foram escriptos ali.
Ao lado de Camillo, compartindo os seus
soffrimentos com uma dedicação heróica,
acompanhando-o com uma solicitude extre-
mosa de carinhos, destaca o vulto escul-
ptural d'essa intelligente e formosa senhora
que tão hom soube comprehender a grande
alma de Camillo nas sublimes melancolias
dos seus dias nublados e nas vibrantes ale-
grias dos seus dias ridentes.
Jorge, o filho mais velho de Camillo, é
um espirito dado a vagas tristezas; mas
atravez de um véo de lagrimas, que ás ve-
zes lhe marejam nos olhos e nas palavras,
descobre-se um talento onniimodo, rico es-
*.)
pccialiiionlc de aptidões artísticas. Jorge é
poeta, é prosador, é musico e desenhista.
Kii devo-llie a amabilidade de me ter oíTe-
recido muitos dos esboços que enchem a
sua pasta; alguns d'elles teem subido valor,
}>orque são o retrato a crayon dos perso-
nagens creados por seu pae no Etisebio
Macário: o Fistula, o Barão do Robarai,
o Abbade de S, Thiar/o de Faija, a Tron-
cha, o próprio Eusébio.
Nuno, o viuvo, tem vinte annos: é o
pae da innocente criança cuja prematura
morte deixou aberto no coração do vis-
conde de Correia Botelho o vácuo profundo
da saudade.
Camillo fallara-me da sua querida neti-
nha— a cândida flor que durara o que du-
ram as rosas, apenas uma aurora.
— Aqui estou, dissera Camillo, na soli-
dão da aldeia, rodeado de arvores melanco-
Hcas, e de pensamentos tão melancólicos
como as arvores. É notável, acrescentara,
a febre de saudade com que o meu espirito
vae, pelo passado dentro, á procura de pes-
soas que são já mortas, e com as quaes
aliaz eu tive ligeiras relações litterarias ou
pessoaes. É revolvendo memorias que o
20
ineu espirito trabalha e descansa . . . Tudo
isto faz profundamente triste esta casa,
onde prematuramente se apagou o único
raio de sol que podia rarefazer as trevas.
É ainda ao periódico Alvorada que eu
vou procurar estancias lacrimaveis do avô
saudoso c angustiado. Duas quadras — tam-
isem duas quadras — de uma belleza pere-
grina, que só a saudade de um anjo pôde
inspirar:
Píirecia dormitar: tinha morrido.
Pedi que a não levassem no caixão;
Que a deixassem mirrar e desfazer-se
Como a flor se desfaz sem podridão.
Teimaram em levar-m'a, o eu cingi-ii
Ao peito que se abriu pela pressão;
Depois pude escondel-a, e tenho-a morta
No meu despedaçado coração.
Aproveitei o ensejo de dizer-lhe:
— Para os que nunca deixaram de o lèr,
e o sabem comprehender, meu bom amigo,
não passa despercebido esse novo caudal
de sentimento que dá aos seus escriptos
mais recentes o encanto dolorido de uma
saudade vaga e vaporosa como um subtil
aroma (pie se derrama polo ambiente da
'21
memoria . . . Puis hem, aproveite esta nova
phase do seu poderoso talento, as tintas
deliciosas que uma copiosa revivescência
de sensibilidade pòe n'este momento na
sua palheta de artista, e escreva um ro-
mance de amor, sem preoccupações de en-
redo, ouvindo-se a si próprio; condense
rrum livro, que deve sahir encantador, to-
das essas fragrâncias que se perdem no
silencio meditativo do seu espirito...
— Nào posso, respondeu Gamillo, não
poderia arrancar sensações de mim pró-
prio sem um esforço fatigante. Um trabalho
d'essa ordem deixar-me-ia exhausto de for-
ças. Eu sentia os meus romances, e foram
muitos os que escrevi. Só d'aquella banca,
que ali está, sahiram cincoenta e dois.
Conversávamos no escriptorio, que fica
no segundo andar. É uma sala vasta, lumi-
nosa : três ou quatro largas janellas abrem
sobre a quinta.
N'este mesmo andar tem Camillo o seu
quarto de cama. A ramagem da acácia do
Jorge e a folhagem da trepadeira combi-
na m-se para coar atra vez de esmeraldas
uma penumbra suave.
X(j primeiro andar ha duas salas: a do
o.>
bilhar cm que se encontram retratos de fa-
mília; o retrato de Herculano, e o de D.
Frei Bartliolomeu dos Martyres, desenhado
pelo Jorge;— e a casa de jantar, cujas janel-
las dão para o pateo, a que já tive occasiào
de me referir, sem comtudo pagar o meu
feudo de gratidão, como devia, ao peceguei-
ro frondoso cujos bellos maracotões eu
agradeci, ha annos, nas chronicas que por
esse tempo escrevia para o Diário IllUs-
tvado.
Fica perto do prédio, e á esquerda do
portão de entrada, o monumento que a pro-
prietária d'esta agradável vivenda ali man-
dara erigir em honra de Castilho. Essa sin-
gela pyramide de granito, sombreada de
copadas arvores, tenho-a aqui reproduzida,
diante de mim, também pelo lápis de Jorge.
Foi penetrado de commovido respeito
que eu li a inscripção posta n'esse simples
monumento, tão eloquente na sua simpli-
cidade:
ANTÓNIO
FKIJCIANO
DK
CASTILHO
PRINCIPE
DA LYRA
PORTUGUEZA
ESTEVE
n'eSTE LUGAR
í:m 15 de julho
DE 18GG.
MANDOU ERIGIR
ANNA PLÁCIDO
E na ffice que íi(^a voltadíi para o iiiiiro:
COM
os SEUS
DISCÍPULOS
THOMAZ RIBEIR(\
EUGÉNIO
DE CASTILHO,
.1. C. VIEIRA DE CASTRO,
C. C. BRANCO.
Castilho assistiu á inauguração do seu
próprio monumento, e os filhos de Camill(->,
1^1
eiitrio duos rrinnçns, ofTereccrani oo pootn
venerondo, em seu uonie, n r-oròa poetio/i
((ue pnra essa commovente festa de familia
entretecera a lyra eiithusiastica de Tlio-
maz Ribeiro:
Por entre cantos e flores
í-heiíaste, rei da poesia,
como uni clarão (1'ale.í?ria
jiirnuidõ o]n ninn^rio (roniorp-;.
Onde ha rei, ha sceptro e soh»»!
Rei, vimos trazer-te a c'ròa.
Tens maior corte em Lisboa,
não tens melhor capitólio.
Somos de troncos roliustos
os loiros, os tenros gomos.
Das flores surgirão pomos?
Se Deus regar os arbustos!
Porque és grande, hão de os vin<loiros
dar-le a sagração dos liymnos;
I»oi'que és bom para os meninos,
toma esta c'r6a de loiros.
Nossa c'rôa e nossas flores
guarda em sjiudosa memoria; —
o monumento é da gloria;
)i c'rô;i é só (los amores.
L. >
Vaes partir! levu-a oointigo,
»' jura jior teus carinhos
«[ue, em nós já senilo homenzinhos,
serás nosso mestre e amií^^o.
Que de recordações melancólicas a iii-
scripção do monumento e os versos de Tho-
maz Ribeiro fizeram accordar na minha
alma !
Castilho, o poeta ali coroado n'aquella
apotheóse tão modesta e tão gloriosa, vi-o
eu descer ao seio da terra, (fue elle tiinlo
amava — no seu })antheismo intuitivo de cego
ariolo — ao cahir de uma tarde serena e
triste, no cemitério dos Prazeres, em Lis-
boa.
Rodrigues Cordeiro, com a voz entre-
cortada de lagrimas e soluços, dissera-lhe,
em nome de todos aquelles que o amavam
como mestre e amigo, o extremo adeus.
Depois, a pedra do jazigo cerrou-se, a bar-
reira da eternidade ergueu-se.
A noite descia lentamente.
As crianças das escolas da capital, que
tinham ido acompnnhnr ao cemitério o ca-
dáver d'aquelle que para ellas inventara o
Methodo repentino, d'aquelle que as ensi-
nni-a ;i gorgeinr o alplinbeto — porque Casti-
20
llio reconhecera (pie os pequenos precisoni
ser educados coino se foram pássaros— as
crianças, dizia eu, tendo mais a intuição
do que a consciência da perda enorme que
acabavam de soíTrer, retiravam arregimen-
tadas, duas a duas, em longas filas, com
os olhos no chão, n\im silencií) triste e
n'um passo cadenciado.
Pouco tempo antes, e em mais de uma
noite, eu acompanhara Castilho ao cama-
rote n." 19 do theatro de D. Maria durante
as representações do Tartufo. Logo que o
panno cahia, descíamos ao palco a passar
os intervallos no camarim do actor Santos,
que o visconde de Castilho muito apreciava.
Castilho, um morto! Santos, um cego! Es-
tas maguadas recordações travam-se no
meu espirito corno os elos de uma cadeia
de saudades que o confrangem.
Evigenio de Castilho nunca o vi ; está
algemado ao leito ha muitos annos. Mas
correspondi-me com elle por intermédio de
seu pae, do Porto para Lisboa, quando
emprehendeu publicar um jornalsinho litte-
rario, que me parece ter-se chamado a Fo-
IJia rios curiosos, e me pedia versos que eu
lhe mandíiva, or^íulhoso ão podido.
L>7
\ ieira do Cnstro, talvez o mais dcsgra-
çndo de tudos, conlieci-o pela primeira vez
no Porto, na sala da sociedade Pátria e
familia, durante um sarau litterario em que
eu ousei, na sua presença, e na de todo
um auditijrio nuiito selecto, recitar um pe-
queno discurso ({ue alii corre impresso en-
tre a minha insigniticante bagagem de es-
criptor.
Elle habitava n'esse tempo o antigo mos-
teiro de Moreira, a dois passos do Porto,
e pul)licava o opúsculo A Republica. Era
casado e feliz. Chamava-se-Ihe então o pri-
meiro orador portuguez, successor de José
Estevam. Tinha sido deputado, creio mes-
mo que o era. Seria ministro de qualquer
pasta no Tlia seguinte. E quando todos es-
peravam vel-o chegar aos conselhos da co-
roa, vimol-o partir para o degredo, depois
de haver tropeçado no cadáver da esposa
que assassinara.
O desgraçado assistira á sua própria
queda, que tora das mais estrondosas em
que a curiosidade publica se tem cevado.
O meu thema, as Flores, era um pre-
texto para fallar do amor. Procurei provar,
com mais imaginaçà(^ do que sciencia, que
íis flores se entendiam amorosamente como
as almas. As senhoras applaudiam. Os ho-
mens sorriam. Meira de Castro, sempre
poeta, abraçara-me. E eu, no dia seguinte,
dei uma péssima hção em botânica elemen-
tar ao professor Almeida Pinto, do ly-
ceu.
Os filhos de Camillo foram homenzi-
nhos, segundo a phrase de Thomaz Ribei-
ro. Hoje são homens. ]\Ias Castilho já lhes
não alcançara o penujar do buço. E se elle
vivesse ainda, talvez que o melancólico
Jorge, concentrado e sonhador, entendesse
melhor do que ninguém, por os amigos si-
lêncios da lua, em S. Miguel de Seide, al-
guma trova do Amor c melancolia que o
poeta Castilho viesse de Lisboa ali recitar
ifaquellas sombras plácidas que aprende-
ram a venerar o seu nome em torno do mo-
numento singelo.
Thomaz Ribeiro, o eloquente intérprete
dos filhos de Camillo na áurea côrtesinha
litteraria que Castilho encontrara em S.
Miguel de Seide, é em 1885 como era 18(3t)
um poeta cuja inspiração roça as azas pela
lagoa sombria dn politica sem afundar-se,
do mesmo modo que as andorinhas, pelas
2\)
cídiíias dn cíniiciiki, esvoiíçam sobre a cor-
rente de iiui rio sem nicrgulliar.
Logo que pôde de8l)ragar-se de urna
pasta, respira em verso. N'este momento
está saboreando o goso da liberdade litte-
raria no sen periódico .4.s Republicas, em
qne os relâmpagos da poesia rasgam lumi-
nosamente o horisonte caliginoso do artigo-
de-fnndo. Não contente de poetar ellc pró-
prio, apadrinhou o alvitre de abrir o i te iro
semanal onde versejadores adventicios con-
corram a glosar trovas populares, como
esta :
Vi-te saliir ninr em fora,
Ceyiiei, olhando esse mar.
Ponnie me disseste :— espera!
Se não tinlias de volt.ir?
E o mais é que, pelo prestigio da sua
auctoridade, consegue tentar aquelles mes-
mos que, na milicia de Apollo, estão rele-
gados a segunda reserva. Tentei-me eu, e
sou d'esses. Mas já que este livrinho é de
memorias para a velhice, fique mais esta
guardada no archivo da saudade:
:30
(\ TIIOMAZ RIBEIHO)
Vi-te síiliir mar cm fora.
E a saudade que eu ?enti
Rasgou-me o peiio n'ess'hora
Em que chorava x>or ti.
A ausência tem tantas maguas.
Tão sofírida lieroec idade.
Tanto resiste quem chora,
Que eu puz os olhos nas aguas
E, sem morrer de saudade,
Vi-te sahir mar em fora.
Ceguei olliando e^^se mar
Pleito de ondas e de abrollios.
Mas que importa a luz dos olhos,
Se não tenho a quem olhar?...
Tanto a vista me prenderam
As ondas que tu sulcavas.
Que os olhos escureceram
No rumo em que navegavas.
E assim por ti a chorar,
Ceguei olhando esse mar.
Porque me disseste: espera!
Na hora extrema, derradeira,
Se já veio a primavera,
Se já floriu a amendoeira,
E tu não voltaste ainda?!
Se este mal era som cura.
Se tinha de ser infinda
A dôr que me dilacera,
A auseni.ia que me tortura.
Porque me disseste: espera?!
:;i
So não tinlias de voltar.
Melhorou niorre.-se alli;
Que mais valia acabar.
Que ter de viver stMii ti.
Não ha ror(;a que resista
Á dòr (|ue nunca descança.
Tivesse eu perdido a vista.
Mas não penlesse a esperança.
Bem feliz acabaria
Alli, á beira do mar.
Se soubesse o que seria.
Se não tinhas de voltar.
Ás quatro horas da tarde, a amabilissi-
ma auctora da Lii.^ coada por ferros per-
guntava-me se eii, sacrificando os meus
hábitos Hsbonenses, seria capaz de jantar
ciqtiella hora.
— Em Seide, respondera Camillo, janta-
se sempre.
Fomos para a meza, em cujo plateau
verdejavam as fructas mais escolhidas da
quinta, e em cujo ambiente os acipipes suc-
colentos de uma boa cosinha de provincia
punham os aromas de um excellente jantar.
Camillo estivera silencioso durante al-
ííuns momentos. jNIas eu procurara envol-
vel-o na conversação. Fallava-se dos seus
romances. É difficil escolher o melhor en-
tre os l)ons ; mas eu })retendi negar a pri-
masia do Romance de am liomem rico, por
:\2
saber, desde muito teiupo; que CamilJo o
prefere ao Amo/' de perdição. Todos nós
desejávamos fazel-o interessar pelo assum-
l^to. Foi pois em defeza do Amor de per-
dição que eu pugnei.
— O Amor de perdição, observara final-
mente CamilJo, tem lacunas que eu próprio
reconheci, e não quiz preencher. Disse-o
por essa occasião ao dr. Marcellino de
Mattos. Mas o meu propósito foi não alte-
rar a veracidade dos acontecimentos que
se encadeavam na dramática biographia
de meu tio Simão Botelho. Escrevi sobre a
tradição, respeitando-a como um evangelho
de familia. No Romance de um Iiomem rico
tive um ponto de vista artistico, planeei e
architectei, colori em vez de photographar.
Eis aqui a razão da minha preferencia dada
ao Romance de rim Iiomem rico sobre o
Amor de perdição.
Não me dispensei comtudo de recordar
a profunda impressão que este ultimo ro-
mance produzira em todos os corações
moços d'aquel]c tempo ou nos que pelo
amor rejuvenesciam. Desvelavam-se as noi-
tes na febre da leitura, e reliam-se as pagi-
nas mais sentimentaes nas horas de namo-
33
radn tristeza. Gachi qual pedia para si n co-
roa de espinhos de Simão Botcllio, de Tlic-
reza ou de Alarianna, a auréola da poesia
nas angustias do amor. Amar é soíTrer. E
aquelle livro fallava pelos que sotlriam. Se
a tua dòr te aftlige, faze d'ella um poema,
disse Goethe. Ora aquelle romance de Ca-
millo era o poema em que se fundiam as
dores de todas as almas excruciadas pelo
amor; era o romance de ires, e o poema
de todos.
No recolhimento das Orphãs, a S. La-
zaro, uma das pobres meninas ali encarce-
radas entre as grades de ferro que nos últi-
mos annos foram sensatamente arrancadas,
lia o Amor de perdição, a occultas da re-
gente, entreabrindo a gaveta da sua cóm-
mo*da apenas o bastante para alcançar com
a vista o espaço de uma pagina. Lia de pé,
e fechava com sobresalto a gaveta quando
sentia passos. O livro nunca foi surprehen-
dido, mas as lagrimas que a leitura origi-
nava, muitas vezes o foram. A regente, D.
jNIaria das Dores, via chorosos os olhos da
menina, e perguntava-lhe porque chorava.
— É que estou triste, respondia a edu-
canda.
34
Mas as tristezas clava-lh'as a leitura for-
tuita do romance de Gamillo.
Favorecia-me na apologia do Amor de
perdição o voto aiictorisado da intelligente
e illustrada dona da casa, que depois nos
recordou a belleza do romance O Esque-
leto. Eu citei por minha vez A agulha era
palheiro, e a Sereia, romance que tem
para mim um valor especial, porque reúne
para a minha saudade os nomes de Gamillo
Castello Branco e José Gomes Monteiro.
O primeiro capitulo é baseado sobre um
artigo de Monteiro acerca do antigo thea-
tro lyrico do Porto, no Gorpo da Guarda.
Accresce que o meu exemplar da Sereia
tem uma historia curiosa. Na capa, sobre
o titulo, ha uma pequena mancha de tinta,
que tomou a forma caprichosa de um poly-
gono estrellado. Um dia, sem que eu sou-
besse como, desappareceu-me da estante;
foram baldados todos os esforços para en-
contral-o no meu escriptorio. Querendo pre-
encher a falta da Sereia na collecçào das
obras de Gamillo, resolvi-me a comprar um
novo exemplar. Mas a suspeita de ter sido
roubado, fazia com que eu relanceasse a
vista por todos os romances portuguezes
.).>
([iic encontravíi á venda uns lojas de livros
VIU segunda mão.
Passaram mczes, e um dia, n'uma d'es-
sas lojas, na rua Augusta, encontrei um
exemplar da Sereia. Tirei-o da estante : era
o meu! Na capa amarella, sobre o titulo, o
polygono estrcllado, o borrão ! Perguntei
quanto custava. Trezentos reis, resj)ondeu
o alfarrabista. Paguei sem discutir. Depois
de ter pago, perguntei-lhe:
— Lembra-se de quem lhe vendeu este
livro?
O alfarrabista quedo u-se a evocar as
suas recordações.
Mas devo suppòr que não poude lein-
brar-se.
Depois de jantar, viemos sentar-nos nos
bancos do pateo. A tarde estava serena; as
folhas das arvores immovei^. O viscon-
de de Correia Botelho, fumando o seu cha-
ruto, conversava animado. Lembrei-lhe que
fosse passar o inverno em Lisboa, entre os
muitos amigos e admiradores que ali tem.
O clima, menos rigoroso que o do norte,
deve convir aos seus padecimentos. Gamillo
não repelliu o alvitre. Mas o projecto de
viagem íicou para segunda leitura, quando
3G
ou voltasse a Seide para despedir-me. Com-
})rometti-iiie gostosamente a fnzcl-o, e es-
]»(?r() cumprir.
A tarde declinava ii'uma suavidade dor-
mente. Os pássaros cantavam no arvoredo
da quinta, n'uma festa de lyrismo primi-
tivo. Junto ao monumento de Castilho con-
densava-se uma sombra silenciosa, como
se as aves não poisassem n'aquelle recinto
senão para chorar o ])octa que as cantara.
Eram horas de partir. Os meus amáveis
hospedeiros, e os seus hospedes, vieram
acompanliar-me ao portão da quinta. O
visconde procurara apoio no meu braço,
ao passo que a sr.* D. Anua Plácido colhia
para mim algumas flores do seu jardim, —
recordação inestimável da minha visita a
Seide.
Fora do portão esperavam respeitosa-
mente o Bernardo do João de Deus e a
garrana. Ambos pareciam satisfeitos: elle
porque trazia mais vinho verde no estô-
mago, ella porque tinha menos moscas
no pescoço. As moscas do Minho já cu
disse que são formidáveis, porque lhes
senti, por endosso da garrana, a dolorosa
ferroada. ^> vinho verde de S. ^liguei de
3"
Seide é de se lhe tirar o cliapcu, mesmo
|)ara que o chapéu não caia da cabeça caso
a gente se tenha desmandado nas libações.
É excellente e, por ser encorpado, deve
trepar: — pelo menos, o Bernardo do João
<le Deus foi d'esta opinião.
Antes de montar, pedi a Camillo que se
não risse da minha impericia de cavalleiro.
— Oueni lhe dera essa garrana no Chia-
do ! dissera jovialmente Camillo.
— Piedade! exclamei eu sobre o sellim.
A garrana, comprehendendo melhor as
minhas intenções do que as minhas espo-
ras, partiu.
Eu parti com ella, e o Bernardo do João
de Deus na alheta de ambos.
Em Landim, na venda do José Maria,
conversavam os mesmos quatro homens.
De algumas casas subia placidamente o
fumo do lar accèso para a ceia. Em outras,
ouvia-se fallar mulheres, chorar crianças.
Alguma cabeça loira, sentindo os passos
da garrana, vinha espreitar á janella.
Pouco adiante das Campas, dois ])OÍs
corpulentos, largamente armados, pasta-
vam em liberdade, com o ar de estarem já
bem fartos de pascigo.
38
Á medida que nos aproximávamos de
Santo Thyrso, iamos encontrando os ran-
chos dos romeiros que voltavam do arraial
da Trofa. A viola minhota, chuleira e fol-
gasã, cadenciava a caminhada n'um anda-
mento militar, como os rufos de um tam-
bor regulam o passo largo e unisono dos
soldados de um destacamento em marcha.
O tocador, pendida a cabeça sobre o peito,
sacudia a mão direita fortemente pelas cor-
das, n'um repenicado estridulo. O cami-
nho de ferro de Bougado alliviara os ro-
meiros da fadiga da jornada. Iam frescos
como se tivessem bebido menos e descan-
sado mais.
Que diriam os bcnedictinos de Santo
Thyrso se podessem resuscitar, e, debruça-
dos no muro da cerca, vissem desenro-
lar-se por sobre o arvoredo fronteiro a
pluma ondulante do fumo da locomoti-
va?!
Elles viveram ali entrincheirados entre
a villa, que engrandeciam, e o rio, que os
deliciava. De um lado, as moçoilas carnu-
das e carnaes; do outro, os rouxinocs de-
vaneiadores da beira d'agua. De portas a
dentro, a cosinha e o coro. Tudo aquillo
39
era d'elles, os frades, senhores siizeranos
das localidades que povoavam, — directa e
indirectamente. U caminho de ferro é um
invasor audacioso, que passa esmagando e
rompendo. Os frades, se agora podessem
ouvir-lhe o silvo triumphal, gritariam ád'el-
rei contra o progresso, apitariam contra a
machina a vapor.
No relógio dos destinos humanos ha
uma hora providencialmente marcada para
tudo o que principia e acaba. De modo
que, por uma sabia organisaçào superior á
nossa intelligencia, tudo principia e acaba
quando deve principiar e acabar. Ao frade
que comboyava as almas para o ceu, suc-
cedeu opportunamente a locomotora que
])assa comboyando passageiros para Gui-
marães. Deus é grande !
Era noite fechada quando entrei em
Santo Thyrso. Valeu-me a escuridão ao
desprimor da gineta. Não havia espectado-
• res, e a garrana alargava o passo, contente
de se vèr perto de casa. Apeei, entregando
a chibata ao Bernardo do João de Deus,
que me perguntou :
— E que tal, a garrana? Não" dizia eu
que era segura?
AO
— Mais seguro do que isto, respoufli,
só o Banco de Portugal.
EUe não entendeu; por isso, riu.
E eu recollii-me com as gratas recorda-
ções d'esse dia agradabilissimo que passei
na quinta de S. ^liguei de Seide, sob o
tecto hospitaleiro do primeiro romancista
portuguez, entre pessoas queridas, e me-
morias saudosas de que tanto havíamos
íallado.
Santo Thyrso, 21 de agosto de 1885.
Alberto Pimentel.
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PQ Pimentel, Alberto
9261 Uma visita ao primeiro
ZyLl^ romancista portiiguez
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